Título: Para CVM, país ainda precisa ampliar base de empresas abertas
Autor: Vieira , Catherin ; Valenti , Graziella
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2007, Especial, p. A18

Num ano de recordes absolutos, em que as emissões de títulos de empresas somaram R$ 164,5 bilhões, sendo que só as ofertas de ações representaram quase metade desse volume, a fala em tom baixo e tranqüilo pode dar a falsa idéia de que Maria Helena Santana, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), está em ritmo pausado e pouco animada com o forte movimento do mercado brasileiro. Ledo engano.

A xerife, que é linha dura e vem cumprindo à risca seus planos, acredita que é tempo de continuar alargando a base de companhias abertas. Para ela, o momento não é de regular questões sofisticadas, mas educar e levar a discussão de governança a cada vez mais e mais empresas e também às escolas, para melhorar o preparo das empresas e a capacitação dos profissionais para lidar com as exigências da atual realidade do mercado de capitais.

Nos primeiros meses do mandato, que começou em julho, Maria Helena, como prometeu, divulgou a minuta que prevê a criação da superintendência de "enforcement", termo em inglês que reúne os conceitos de fiscalização e condução de processos. Logo nos primeiros 30 dias à frente da CVM, enfrentou o teste do Novo Mercado com a decisão do controlador da Cosan de levar a holding do grupo à Nova York, com poderes especiais para seus papéis. A decisão da autarquia foi avisar o empresário Rubens Ometto de que poderia ser alvo de um processo, no futuro, e determinar que alertasse os investidores sobre esse risco no prospecto da operação. No segundo mês de trabalho, também promoveu novo bloqueio de contas de investidores suspeitos de uso de informações privilegiadas.

Apesar de não contar com novos recordes para 2007, a boa nova é que Maria Helena está convicta de que o movimento de acesso das empresas ao mercado continuará no ano que vem. "Hoje, tenho convicção de que não é um movimento passageiro, dado por janelas [de oportunidade]." Admite que o novo cenário aumentará o trabalho da fiscalização, mas diz estar preparada. "Estamos atentos. O crescimento não pega a CVM de surpresa." A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O que será prioritário na agenda da CVM para 2008?

Maria Helena Santana: Ainda há uma agenda importante de regulação, de temas já conhecidos e que estão em fase de acabamento, como a instrução sobre registro de companhias abertas. A nova versão, inclusive, deve estabelecer os descontos para os níveis diferentes de empresas. Há também a regulamentação do artigo 126 da Lei das Sociedades por Ações que trata do pedido de procuração para voto para viabilizar melhor informação aos acionistas nas assembléias gerais e permitir que se organizem por meio de procuração.

Valor: Tudo isso dentro da revisão da instrução 202, que trata sobre o registro de companhias?

Maria Helena: Não necessariamente na mesma instrução. Mas os temas estão sendo analisados juntos para serem postos em audiência ao mesmo tempo. A própria revisão da 202 vai nos permitir promover alterações na instrução 400, seja para tratar de forma diferente a divulgação de informações durante as ofertas de certos tipos de emissores, seja para diferenciar os próprios pedidos de registro de oferta. Pode-se até regulamentar um regime de colocações privadas de ações.

Valor: Seriam ofertas para um investidor mais qualificado?

Maria Helena: Seriam ofertas com restrições em relação ao esforço de venda dos papéis. Algo como o artigo 144-A, que existe nos Estados Unidos, por exemplo. A empresa poderia ter um processo de registro da emissão facilitado e teria, por outro lado, restrições em relação ao público para o qual pode distribuir os papéis. A oferta teria que ser mais restrita e qualificada. Isso significa cuidado sobre a divulgação que pode ser feita sobre a operação.

Valor: E a questão da remuneração dos administradores, também entra na revisão da 202?

Maria Helena: Nossa intenção é melhorar a divulgação e a visibilidade sobre a estrutura de remuneração envolvendo incentivos variáveis ligados à performance do executivo e outros tipos de benefícios. No mínimo, segregar e explicitar o que corresponde à forma e ao montante de remuneração destinado à diretoria e ao conselho. Hoje, o que se divulga nas atas é a remuneração global. Por outro lado, já há algum tipo de informação mais detalhadas dos planos de opções de ações, junto com os balanços trimestrais. A idéia é talvez combinar as coisas e facilitar o entendimento. Com dados dentro do IAN [Informativo Anual], mas com atualizações quando houver necessidade

Valor: Como está o estudo sobre o rodízio obrigatório de auditores nas empresas?

Maria Helena: A previsão de conclusão é no primeiro semestre e com base nesse resultado nós vamos observar os efeitos do rodízio e avaliar. Vínhamos recebendo comentários de companhias sobre custos atribuídos ao rodízio. Resolvemos aprofundar nossa avaliação, incluindo custos eventuais e benefícios também.

Valor: Podem propor mudanças?

Maria Helena: A partir do resultado vamos avaliar se haverá sugestão de mudança ou não na instrução 308. É uma discussão que também corre no âmbito do Banco Central. Vamos procurar compartilhar o resultado e, se possível, alcançar uma forma conjunta de tratar o problema.

Valor: Questões relacionadas às "pílulas de veneno" nos estatutos das novatas da bolsa têm sido muito discutidas. Elas podem representar problemas em 2008?

Maria Helena: Na verdade, talvez não haja ainda um diagnóstico sobre que armadilhas não desejadas acabaram ficando nessas cláusulas estatutárias de algumas companhias. Com certeza, esse processo de conscientização com relação a eventuais problemas deve crescer. Pode até ser que se conclua que alguns detalhes precisam ser modificados em determinadas empresas. Mas não imagino que isso vire um grande problema de mercado e sim que deflagre um movimento de ajustes eventuais.

Valor: Até que ponto as assembléias podem modificar essas cláusulas e até que ponto a CVM pode interferir?

Maria Helena: A única coisa que a CVM fará é olhar do ponto de vista da legalidade. Por exemplo, este ano tivemos uma reclamação de acionista a respeito de uma proposta de mudança de estatuto numa companhia, que, segundo o acionista, configurava uma restrição legal de direitos. A CVM analisou, concordou e manifestou sua interpretação. A companhia acatou, corrigiu os problemas e modificou a proposta. A autarquia pode ser incitada a se manifestar sobre a legalidade de determinadas coisas.

Valor: Há outras questões no horizonte, como operações e reestruturações societárias inesperadas?

Maria Helena: Com o mercado ativo do jeito que está, coisas que levavam dez anos para chegar aqui antes, chegam agora muito rápido. Desse ponto de vista, devemos estar preparados para acontecer cada vez mais operações inusitadas . É um desafio para nós olharmos para uma situação que não estava prevista, da qual imaginava-se que o mercado estaria imune, em função da regulação ou da auto-regulação, e precisar ter uma reação, se posicionar, usar as ferramentas de que estiverem disponíveis para agirmos. Mas não sei de nenhuma caso específico hoje.

Valor: Depois de tanta euforia, podem surgir efeitos colaterais?

Maria Helena: Certamente, essa rapidez e essa super-receptividade do mercado podem ter feito alguns processos serem menos naturais do que deveriam ter sido, um pouco mais induzidos artificialmente pelo entusiasmo ou para aproveitar o entusiasmo. Temos que fiscalizar mais e ficar atentos porque a cultura e a noção sobre prestação de contas e deveres legais da companhia aberta, do controlador e dos administradores tendem a estar menos consolidados na cultura dessas organizações.

Valor: E são 63 novatas...

Maria Helena: Sim, mas, por outro lado, temos que ver algo superpositivo que é essa segregação da noção de família em relação à companhia, a profissionalização da gestão, a organização dos ativos da empresa em função do negócio-fim e não em função de outros negócios da família. Isso não ocorria antes. Havia e ainda há empresas que têm o negócio principal, mas têm outros de interesse dos acionistas controladores pendurados e que eventualmente não fazem o menor sentido. Só estão ali por razões históricas.

Valor: O mercado exige uma estrutura melhor das companhias...

Maria Helena: É, uma segregação real do que é administração de conflitos familiares e interesses das pessoas em relação ao que é a administração da gestão e da definição estratégica. Tudo isso deve ser feito antes. Para se trazer ao mercado um veículo que, embora recente, esteja estruturado com esse tipo de consciência. Isso já é um avanço e nós estamos nesse processo, de evolução, de formação cultural. Mas também com problemas típicos de um processo de crescimento.

Valor: Quais são os desafios do mercado e as novas fronteiras da governança daqui para frente?

Maria Helena: Acredito que, aqui no Brasil, o principal desafio ainda é alargar a base [de companhias abertas]. Não acho que a gente precise, por enquanto, dar tanta atenção às questões mais sofisticadas. Obviamente, alguns temas serão alvo de cuidado por parte dos reguladores e de alguns investidores, do tipo: como lidar com a companhia de capital pulverizado? Como garantir que a empresa, por não ter um núcleo de acionistas estável, não perca de vista a estratégia sustentável, em detrimento do foco nos resultados de curto prazo? Acho que essas questões são um grande desafio. Mas, olhando para o país, eu me preocuparia em alargar a base, em fazer um esforço de educação, de capacitação de conselheiros, de diretores de empresas, de famílias e acionistas, em relação às vantagens e aos princípios da boa governança. Para que isso seja implantado em um número muito maior de empresas e consolidado naquelas que já estão no mercado e eventualmente ainda não tiveram tempo para refletir sobre isso.

Valor: Ainda é preciso, então, um esforço educativo?

Maria Helena: Acredito que o país ganharia muitíssimo, em termos de eficiência e desempenho, se conseguíssemos que esse tema fosse mais contemplado em mais empresas e até escolas. Ouvi uma vez que, no Brasil, quem quer criar empresa procura primeiro o contador, o que é verdade. Questões importantes para a sobrevivência do negócio acabam ficando em segundo plano, como a estratégia a ser buscada, a estrutura financeira e os instrumentos de financiamento que estão o à disposição. Acredito, então, que há muito a fazer para podermos termos o número de empresas - e de empresas de sucesso - que precisamos.

Valor: Este ano tivemos 63 ofertas públicas iniciais. Em 2008, teremos um ano forte para ações de novo ou outros instrumentos serão mais explorados?

Maria Helena: Acho que pode ter essa tendência, de outros instrumentos crescerem mais que as operações com ações. Algumas companhias estão com o balanço desequilibrado, muito desalavancadas, permitindo um endividamento. Também é de se esperar uma rodada de consolidação. Além disso, acho que os investidores estão mais seletivos. É possível, portanto, que o número de operações de ações de novas empresas seja menor do que o desse ano de 2007. Ainda assim, será um enorme sucesso. Hoje, tenho a convicção de que isso não é um movimento passageiro e dado apenas por janelas.

Valor: Nesse ano teve muito dessa correria por conta da sensação do empresário de que poderia ser uma questão de janela, não?

Maria Helena: Isso pode ter feito parte do cenário. De um lado, tinha uma receptividade enorme e, de outro, um pouco do sentimento do gato escaldado. Nos acostumamos tanto a ter vôos curtos na nossa própria economia. Isso é uma percepção que ninguém tira do radar rapidamente. A ansiedade também reflete insegurança com a visão do estrangeiro sobre o país, já que ele foi o principal comprador.

Valor: Nas questões de informações privilegiadas e de fiscalização, ainda há dificuldade para a autarquia acessar determinadas informações?

Maria Helena: Tem um grupo de trabalho do Coremec [Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiros] que está discutindo uma alteração na lei complementar 105 para assegurar a troca de informações sobre sigilo, não só para a CVM, mas também para a SPC [Secretaria de Previdência Complementar]. Não é a quebra de sigilo. É a transferência da obrigação de sigilo do Banco Central, em relação aos registros financeiros, para o outro regulador que receber a informação - e que poderá usar os dados para compor suas investigações. Essa proposta está para ser fechada entre os órgãos do Coremec, para, daí então, ser encaminhada ao legislativo. Acho que seria extremamente importante para nós, pois os casos de identificação de uso de informação privilegiada são em si casos complicados. Faria muita diferença para a gente nessa hora.

Valor: Quantos casos de informação privilegiada estão sendo investigados atualmente?

Maria Helena: São quatro com o processo aberto. Tem outros que estão em fase de análise. Mas, por vezes, na avaliação preliminar, percebe-se que não há indício suficiente e fecha-se o caso.

Valor: Fica mais difícil para a CVM configurar o vínculo quando o caso envolve transferência da informação para terceiros...

Maria Helena: Nem sempre é preciso mostrar esse vínculo. Aqui, no Brasil, não é sempre que há essa necessidade para efeito de processo administrativo ou na esfera civil de indenização judicial. É possível discutir o caso com base em indícios. Há condições para condenação administrativa ou civil mesmo tendo apenas indícios - tais como contradições, flagrantes e histórias inverossímeis, aliadas a um "timing" extremamente preciso. Muitas vezes, esse tipo de situação é suficiente para demonstrar o uso de informação privilegiada. Já para a esfera penal isso não é possível.

Valor: Temos hoje uma nova realidade de mercado. Há mais investidores, as bolsas são empresas abertas, as necessidades de informação são muito maiores. Isso vai influenciar o modo de atuação da CVM?

Maria Helena: Tem que influenciar. Temos nos preparado para essa transformação. Ela não pega a CVM de surpresa. De 2004 para cá, fizemos alguns investimentos em automação de parte do trabalho de supervisão. Há poucos dias, conseguimos licitar um sistema que automatizará as rotinas na superintendência que cuida do acompanhamento de empresas, permitindo lidar com um número muito maior de companhias. Concluímos também a licitação do sistema que mecanizará rotinas que dependem hoje de iniciativa humana na superintendência de relações com mercado. É um processo que vem sendo feito e que, graças a ele, acho que até aqui temos um completo controle da situação. Na superintendência de orientação ao investidor, estamos estruturados e temos sido capazes de atender um volume crescente de demandas, reclamações e dúvidas. E estamos discutindo formas de potencializar o alcance do que fazemos ali. Temos também um pedido de concurso para ampliação de quadro, que está no Ministério do Planejamento, já foi aprovado pela Fazenda, e espero que ande. A CVM tem arrecadado muito mais do que gasta, nos últimos anos, e não vejo motivo para que esse concurso não venha a ser autorizado e possamos ampliar um pouco o nosso quadro. Mas, o principal pilar da ampliação da nossa capacidade está na informatização de rotinas.

Valor: E do ponto de vista das corretoras, como fiscalizar a atuação delas, que acabam sendo importantes intermediários nesse processo de crescimento do mercado?

Maria Helena: A CVM fez a reformulação da norma de mercados organizados, de entidades auto-reguladoras, por meio da instrução 461. Essa mudança não precisava ter vindo junto com a desmutualização das bolsas, mas veio e fortaleceu as obrigações da entidade a respeito da auto-regulação, especialmente, na parte da supervisão, em tempo real, do mercado e dos seus participantes. A fiscalização direta em corretoras será feita sob o comando de um executivo dedicado a isso e que responda apenas a um conselho de administração, que terá um plano de trabalho previamente aprovado pela CVM. Então, creio que estamos caminhando para contar e nos apoiar ainda mais na auto regulação. Deixando para a CVM as inspeções derivadas de problemas e denúncias. Seremos muito exigentes em relação às entidades auto-reguladoras. Isso contribuirá para termos tranqüilidade de que vamos dar conta do recado.