Título: Possíveis desdobramentos do fim da CPMF
Autor: Scaff , Fernando Facury
Fonte: Valor Econômico, 19/12/2007, Legislação & Tributos, p. E2

Dias atrás o Senado Federal decidiu pôr fim às sucessivas prorrogações da CPMF, tributo que começou a ser cobrado em 1993 sob a denominação de imposto (o IPMF, criado pela Emenda Constitucional nº 3) com uma alíquota de 0,25% e que incidirá até 31 de dezembro deste ano com uma alíquota de 0,38% - um "singelo" aumento real de 50% em 14 anos de incidência "provisória", embora durante 1997 e 1998 sua incidência foi de "apenas" 0,20%.

Especula-se nos meios jurídicos quais serão os desdobramentos deste fato político, uma vez que deixarão de entrar nos cofres federais cerca de R$ 40 bilhões no ano que vem. Isto influenciará o comportamento do governo federal e dos tribunais em 2008? Vamos às principais indagações que se apresentam.

Poderá faltar dinheiro para a saúde pública? Constitucionalmente estes recursos deveriam ser dirigidos para o financiamento dos serviços de saúde, mas nem sempre isso ocorreu. Entre outros fatores, em razão do mecanismo perverso da Desvinculação das Receitas da União (DRU), que retira 20% de todos os valores destinados à saúde, estando os da CPMF entre eles - aliás, bem que o Senado poderia também dar cabo das sucessivas prorrogações deste nefasto mecanismo de fraude às vinculações financeiras da arrecadação. Se olharmos para o orçamento federal de maneira fracionada, a extinção da CPMF fará falta à saúde, mas se o analisarmos de forma global constataremos que a arrecadação do governo federal dá saltos de ano para ano, o que concede uma folga orçamentária para o redirecionamento de prioridades, podendo ser alocado parte deste excesso de arrecadação para custear estas atividades. Não se trata de deixar a saúde pública à míngua, mas de direcionar o superávit de arrecadação para seu custeio. Afinal, desde o imperador romano Diocleciano se sabe que o dinheiro "não cheira", e que pode ser usado nas prioridades que vierem a ser estipuladas pelo poder público. Logo, só faltará dinheiro para a saúde pública se faltar vontade política para tanto.

Será necessária a criação ou a majoração de outros tributos para compensar a extinção da CPMF? Entendo igualmente que não. O valor atualmente arrecadado - cerca de 36% do PIB em tributos - é o máximo que um país em desenvolvimento pode suportar. A carga tributária no Brasil é alta e injusta, pois muito mal distribuída. O princípio da capacidade contributiva - cobrar mais de quem ganha mais - não tem eficácia em nosso país. Deve-se pensar em uma verdadeira reforma tributária na qual o papel do imposto sobre a renda e dos impostos sobre a propriedade e sua transmissão assumam um papel preponderante. Hoje os tributos sobre o faturamento, sobre bens de uso geral (energia elétrica, ligações telefônicas) e os cobrados na fonte sobre salários são os mais pesados.

Será necessário efetuar corte de despesas? Claro que sim. Com a redução das receitas, as despesas devem necessariamente ser objeto de nova avaliação política, estabelecendo prioridades de gastos, preservando os gastos públicos fundamentais para preservar a dignidade dos economicamente mais necessitados. Existem áreas passíveis de corte, que não as do "mínimo existencial", que engloba saúde pública, educação, saneamento e outras atividades correlatas.

-------------------------------------------------------------------------------- Uma dúvida é sobre o comportamento do Judiciário nas demandas em busca da obtenção de direitos sociais --------------------------------------------------------------------------------

Os tribunais serão influenciados pela decisão do Congresso Nacional de não prorrogar a CPMF? Entendo que não. O fato de o Poder Legislativo decidir não conceder mais recursos ao Poder Executivo, preservando-os na sociedade, não me parece que seja um fato que altere os procedimentos do Poder Judiciário, seja em que esfera ele se manifeste. Claro que alguns gastos do Judiciário - como a suntuosidade na construção de novas sedes - e do Poder Legislativo - com emendas parlamentares paroquiais - poderão ser objeto de cortes. Afinal, são R$ 40 bilhões a menos no orçamento público. Mas nada que impeça o livre exercício das funções desses poderes.

Ainda quanto aos tribunais, embora não diga respeito às relações entre o fisco e os contribuintes, uma dúvida que assoma é sobre o comportamento do Poder Judiciário nas demandas individuais ou coletivas em busca da obtenção de direitos sociais. Em alguns Estados, como o Rio Grande do Sul, notícias da imprensa dão conta que já existem mais de 20 mil ações envolvendo medicamentos e ordens judiciais e o valor passou de US$ 5 milhões em 2005 para US$ 13 milhões em 2006, o que já corresponde a 25% do orçamento total da Secretaria de Saúde do Estado. Desse total cerca de US$ 10 milhões já tramitam através de bloqueio direto de dinheiro na conta corrente do Estado. O corte efetuado pelo Legislativo nos recursos do Executivo levará os juízes a reverem suas decisões que implicam em gastos públicos sob o argumento de implementação de políticas sociais? Esta questão não pode ser respondida, em face do vasto número de juízes existentes, mas certamente os tribunais superiores levarão este aspecto em consideração.

Enfim, qual a importância da decisão do Senado em impedir a prorrogação da CPMF? Parecem-me que algumas se destacam. No âmbito político verifica-se a importância do sistema constitucional de freios e contrapesos, que requer maioria qualificada para a aprovação de uma emenda constitucional. Mesmo em minoria, a oposição tem poder de impedir que a maioria a esmague. Não basta ter maioria, é preciso ter maioria qualificada para vencer.

No âmbito econômico, decidiu-se que mais dinheiro nas mãos dos agentes econômicos privados é, nesta ocasião, mais importante do que nas mãos dos agentes públicos. Os R$ 40 bilhões que a União esperava arrecadar em 2008 não se evaporarão. Eles apenas servirão para aquecer ainda mais a economia - e o governo poderá arrecadar mais e melhor em razão deste incremento de atividade econômica, ao invés de cobrar tributo da singela movimentação de recursos financeiros, que jamais foi signo presuntivo de tributação.

E no âmbito jurídico foi cumprida a Constituição Federal, pois este tributo já teve sua morte anunciada várias vezes no próprio texto constitucional. Estava prevista sua extinção em 1998, no artigo 74, parágrafo 4º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), foi prorrogada por mais três anos no artigo 75 do ADCT, teve nova prorrogação constitucional até 2004 pelo artigo 84 do ADCT e, por fim, recebeu nova prorrogação até dezembro de 2007 pelo artigo 90 do ADCT. Enfim, morreu. Já vai tarde.

Fernando Facury Scaff é advogado, sócio responsável pela filial de São Paulo do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro e Scaff - Advogados responsável pela filial de São Paulo, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA)

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