Título: Venezuela cresce, mas ruma para crise
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 20/12/2007, Especial, p. A16

Sob pressão: problemas econômicos reduzem o apoio popular ao socialismo pregado pelo presidente Hugo Chávez A menos de duas semanas de sua maior reconversão monetária dos últimos tempos, quando a moeda local perderá três zeros e passará a chamar-se bolívar forte, a Venezuela atravessa um momento de paradoxos. Nunca se venderam tantos carros novos, a construção civil está aquecida e mal se pode andar nos shopping centers de Caracas, às vésperas do Natal. A economia cresce há 16 trimestres seguidos, deve expandir-se mais de 9% neste ano e ninguém espera menos de 5% em 2008. Mas esse é apenas o lado bom da história.

A parte ruim é que, na avaliação de economistas e empresários venezuelanos ouvidos pelo Valor, há muito tempo a economia não vive com tantas distorções e desequilíbrios. A inflação, que já acumula alta de 18,6% até novembro, está em franca aceleração, e o mercado financeiro de Caracas prevê uma taxa superior a 25% no ano que vem. A indústria nacional usa 92% de sua capacidade instalada e, assustada, não tem planos de investimentos robustos. Com o câmbio oficial congelado em 2.150 bolívares por dólar desde fevereiro de 2005 - e 55,4% de inflação acumulada nesse período -, os produtos venezuelanos perderam competitividade. Até o fim do terceiro trimestre (último dado disponível), as importações de bens não associados ao petróleo aumentaram 36% na comparação com 2006 e chegaram a US$ 28,4 bilhões. Devem encerrar o ano em patamar quatro vezes superior ao registrado em 2003.

Por enquanto, o governo continua apostando nos preços do petróleo para dar fôlego aos gastos públicos, que cresceram 134% desde 2004, apesar de uma recente estabilidade. Não porque tenha contido o impulso gastador, mas por causa das repercussões indiretas das medidas para combater a inflação. O governo reduziu o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) de 14% para 9%, com o intuito de atenuar a alta dos preços, mas viu sua arrecadação diminuir. Criou então, às pressas, um imposto de 1,25% sobre transações financeiras - semelhante à CPMF, mas restrito a pessoas jurídicas - em uma tentativa de recompor o caixa.

As baixas taxas de juros, ao mesmo tempo em que não incentivam a formação de poupança, fizeram explodir a oferta de crédito e a venda de bens duráveis. Já foram vendidos 449 mil carros novos até novembro, 45% a mais do que em igual período do ano passado. Oito em cada dez venezuelanos têm celular - no Brasil, são seis aparelhos por cada dez pessoas. Muitos profissionais liberais da classe média recebem seus salários no exterior, convertendo os dólares pelo câmbio paralelo e despejando seus bolívares em artigos de luxo. Tudo como se não houvesse problemas estruturais.

"O petróleo em alta serviu para postergar a crise fiscal e de balanço de pagamentos. Mas as distorções microeconômicas já afetam gravemente a vida cotidiana dos venezuelanos", diz Orlando Ochoa, professor de economia da Universidade Católica Andrés Bello. Ele observa a emergência de uma economia em que o contrabando, o dólar paralelo e a escassez de produtos de primeira necessidade tornaram-se conseqüências naturais de um mercado repleto de controles cambiais e de preços.

Do leite ao açúcar, de medicamentos ao papel higiênico, os supermercados e estabelecimentos de Caracas sofrem com o desabastecimento. A tal ponto que a estudante universitária Jéssika Betancourt, 24 anos, aproveitou uma viagem de férias à Espanha, no início de dezembro, para trazer quatro quilos de leite em pó. Ela diz que chegou a ficar um mês sem beber leite puro na Venezuela. "Como sabia que poderiam me confiscar o leite no aeroporto", afirma Jéssika, referindo-se às restrições da vigilância sanitária de qualquer país à importação de alimentos, "eu o escondi em pequenos sacos plásticos, na bolsa e debaixo da roupa. Me senti uma contrabandista, me senti humilhada".

Boa parte da explicação para o desabastecimento está no rígido controle de preços praticado pelo governo. Para impedir a corrosão do poder aquisitivo, o governo mantém preços artificialmente baixos para produtos da cesta básica e de grande circulação. Como os custos de produção não param de subir - resultado da inflação alta - e os empresários não conseguem repassar esses aumentos, ficam sem estímulos para acompanhar a forte expansão do consumo.

A garrafa plástica de leite fresco integral, com 900 ml, custa 1.890 bolívares (quase US$ 0,90 pelo câmbio oficial), mas há uma defasagem de pelo menos 1.000 bolívares, segundo Balsamino Rivas, presidente da Federação Bolivariana de Pecuaristas e Agricultores da Venezuela. Na semana passada, o governo liberou o preço do leite longa vida, mas a medida ainda não encheu as prateleiras dos supermercados. É grande a pressão por reajustes ou até a liberação de mais produtos. "Esperamos novas definições até o fim do mês", diz Rivas, um dos representantes da corrente minoritária de empresários mais alinhados ao governo do presidente Hugo Chávez.

Um retrato das dificuldades vividas pelo setor produtivo, por causa dos controles, foi feito pelo professor Ochoa. Ele pesquisou os preços em dólares de produtos básicos em duas cidades fronteiriças: San Cristóbal, na Venezuela, e Cúcuta, na Colômbia. Na cidade colombiana - sem controle -, o açúcar custava 65% a mais, a carne era 66% mais cara, e o óleo, 85%.

À primeira vista, parece que o consumidor venezuelano se beneficia de preços mais baixos. Na prática, entretanto, Ochoa percebe três fenômenos: a baixa taxa de investimento em máquinas e modernização de empresas; a migração de parte da produção industrial para bens não regulados (por exemplo, queijos finos em vez de leite); e o surgimento de um forte mercado informal. Nas cidades, os camelôs que vendem pacotes de açúcar e caixas de leite longa vida parecem fazer bem mais sucesso do que os vendedores de bolsas e outros adornos. No interior perto das fronteiras, o controle estimula o contrabando. "Estamos em uma economia totalmente distorcida", observa o professor.

O último boletim econômico da Fedecámaras, a principal entidade da indústria venezuelana, assinala que o controle de preços "não combate as causas da inflação, apenas o reflexo nos preços". Diz também que as restrições cambiais e o câmbio fixo exercem "cada vez menos impacto" para conter a inflação.

Esse cipoal de regras compromete o dinamismo do setor privado. A Associação de Industriais Metalúrgicos e de Mineração da Venezuela comemora um crescimento de 8% do setor neste ano, mas lamenta ter deixado de abrir 25 mil novos postos de trabalho, devido às travas cambiais que impediram uma expansão ainda maior. As empresas do segmento têm que importar 400 mil toneladas anuais de chapas grossas, vigas de grande dimensão e aço inoxidável. Mas o Cadivi, o órgão oficial que administra a saída de divisas estrangeiras, retém pedidos de US$ 200 milhões das metalúrgicas para a compra de insumos importados, sem similares locais.

"A impossibilidade o ou atraso em conseguir matérias-primas não produzidas no país pode acarretar tempos de entrega mais demorados que o normal", diz o presidente da associação, Eduardo Garmendia. Com isso, acrescenta, os clientes (principalmente a indústria petrolífera) pode dar preferência a fornecedores externos.

Para manter o câmbio artificialmente sobrevalorizado e evitar uma depreciação da moeda, algo que o governo assegura descartar em 2008, a Cadivi precisa fazer um controle rigoroso da saída de dólares. A indústria de medicamentos reclama que a falta de autorizações tem impedido a importação de matérias-primas e leva a uma escassez crônica de remédios, em torno de 15% do total de produtos vendidos nas farmácias, incluindo aqueles usados por diabéticos.

Não é somente a iniciativa privada pró-mercado que vê problemas. Em artigo divulgado na semana passada, o sociólogo alemão Heinz Dietrich, ideólogo do "socialismo do século 21" e um dos mentores de Chávez, alertou sobre os perigos de uma crise econômica em 2008 na Venezuela, "se o governo não tomar medidas urgentes, de imediato".