Título: Mais clientes e preço em alta vão afetar mercado livre
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2008, Brasil, p. A3

O mercado livre de energia, em 2008, tem pela frente, ao mesmo tempo, uma oportunidade promissora e fortes incertezas entre os grandes consumidores industriais. A boa notícia é a vigência, desde o dia 1º, da nova regra definida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que facilita a adesão ao mercado de livre de empresas com demanda entre 0,5 e 3 megawatts (MW). Estimativas da Comerc, uma das principais comercializadoras de energia do país, indicam que isso pode aumentar o mercado livre em cerca de 4 mil MW médios. Hoje, ele movimenta quase 10 mil MW médios - aproximadamente 20% de toda a energia consumida no Brasil.

O dado preocupante é que, em 2008, começam a vencer contratos de grandes indústrias que aderiram ao mercado livre no início da década, podendo escolher livremente seus fornecedores. Na época, após a derrubada do Produto Interno Bruto (PIB) e a expansão da oferta que se seguiu ao racionamento de 2001, havia sobra de energia e os contratos foram negociados por valores relativamente baixos. Os preços foram subindo e hoje a indústria paga a segunda maior tarifa do mundo para a energia que consome, segundo a Abrace, associação que reúne os grandes consumidores livres. "Estamos passando o Japão", queixa-se Marcos Vinícius Gusmão, vice-presidente da Abrace, citando o país que tem as tarifas mais altas.

De acordo com levantamento da entidade, contratos que somam 1.192 MW médios vão expirar ao longo de 2008. Tanto indústrias quanto comercializadoras de energia prevêem dificuldade na renovação. "A tendência é de renovação a preços altos, por períodos curtos, até completarmos a travessia do deserto", diz Gusmão, referindo-se a uma fase de aperto que ele acredita durar até 2013, quando boa parte das turbinas da usina de Santo Antônio, no rio Madeira, começará a funcionar.

Esses quase 1,2 mil MW cujos contratos vencem nos próximos meses não deixarão de existir. Mas uma quantidade razoável dessa energia, até agora disponível para o mercado livre, foi vendida em 2004 e em 2005 para as distribuidoras, com entrega a partir de 2008, nos leilões realizados pelo governo, com o novo modelo do setor elétrico.

Se não houver energia suficiente no mercado livre, as indústrias podem pedir a volta ao mercado cativo, tornando-se novamente clientes das distribuidoras da região onde estão localizadas. Mas esse retorno pode durar até cinco anos, conforme prevê a legislação.

A possibilidade de muitas empresas ficarem descontratadas em 2008 "é real", diz Marcelo Parodi, co-presidente da Comerc. Isso não significa que elas estão condenadas ao escuro. Muitas, porém, serão obrigadas a buscar fornecimento no volátil mercado "spot", em que a variação de preços acompanha o regime de chuvas e que em novembro registrou os valores mais altos desde meados de 2002.

"Cada associado está resolvendo o problema da sua própria forma", afirma o vice-presidente da Abrace, explicando que não há uma solução única para superar a incerteza. Mas, acrescenta Gusmão, existe o risco até de desligamento de fábricas e paralisação parcial da produção, em alguns momentos do ano. Isso poderá ocorrer se as indústrias estiverem descontratadas e os preços da energia no mercado "spot", muito elevados. "É uma situação muito desconfortável."

Para combater esse desequilíbrio, a Comerc avalia que são necessários ajustes regulatórios para dar mais liqüidez ao mercado livre. Um dos pleitos das comercializadoras é permitir que as indústrias possam vender, a outras empresas, as "sobras" da energia contratada que elas não utilizaram.

Hoje, caso comprem 10 MW médios no mercado livre e usem apenas 9 MW em um determinado mês, as empresas são obrigadas a liqüidar a diferença na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Quando os preços no mercado "spot" estão muito altos, isso acaba se tornando um incentivo para produzir menos, a fim de gastar menos energia, e vender as sobras, o que pode ser mais rentável do que a produção em si. Em tempos de preços muito baixos, as indústrias arcam com grandes prejuízos por terem comprado uma energia que não usam. "Isso desestimula contratos de longo prazo", diz Parodi, referindo-se a contratos com 15 ou mais anos de duração, "que podem inclusive ajudar no financiamento de usi- nas geradoras".

Tanta preocupação contrasta com o ânimo provocado pela resolução 247 da Aneel, aprovada ainda em 2006, mas cuja implementação só começou agora, no início de 2008. Ela permite que empresas com demanda entre 0,5 MW e 3 MW procurem comercializadoras para comprar energia no mercado livre, desde que essa eletricidade seja proveniente de fontes alternativas, como eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Há desconto de 50% nas tarifas de distribuição para estimular o desenvolvimento desses negócios.

Para o presidente da Associação Brasileira dos Agentes Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel), Paulo Pedrosa, é uma medida positiva e deve incentivar a busca por negócios em geração. "Já tem muita gente prospectando oportunidades em usinas de açúcar (biomassa) e PCHs", afirma Pedrosa. O executivo ressalva, no entanto, que ainda há aspectos a serem solucionados, como o custo elevado para a instalação de unidades de medição do consumo - equipamentos normalmente postos pelas distribuidoras, mas que passam a ser de responsabilidade do consumidor quando ele migra para o mercado livre de energia.

Uma novidade importante da resolução é que ela permite a adesão de "condomínios de consumidores". Podem juntar-se, para somar pelo menos 0,5 MW de demanda e entrar no mercado livre, empresas em "comunhão de fato ou de direito". Ou seja: empresas que compartilham o mesmo espaço físico (por exemplo, edifícios comerciais e prédios de escritórios) e unidades distantes, mas com o mesmo CNPJ (por exemplo, diversas agências do mesmo banco, espalhadas pela cidade, que consomem pouca energia isoladamente, mas são grandes consumidoras de energia quando observadas em conjunto).

Na prática, há acima de tudo o problema de falta de energia suficiente para atender o crescimento do mercado livre. Isso deve impedir, pelo menos por enquanto, a saída em massa de consumidores das distribuidoras. "O lado da demanda tem um campo imenso", conclui Pedrosa. "O problema está do lado da oferta."