Título: Blindagem externa e risco do real
Autor: André, Monteiro
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2008, Opinião, p. A10

A turbulência pela qual passaram os mercados financeiros nos meses de julho e agosto foi séria. A crise iniciada no mercado de hipotecas de segunda linha nos EUA se propagou, elevando o prêmio de risco global e forçando uma forte corrida para ativos sem risco. Não podemos menosprezar o grau de desconfiança mútua que ainda hoje ronda os participantes dos sistemas de crédito nos principais centros financeiros do mundo, apesar das injeções de liquidez dos respectivos bancos centrais e da redução da taxa de juros nos EUA. Os desdobramentos desta crise de crédito sobre a economia mundial são lentos e incertos.

O comportamento do Brasil nesta crise, até agora, tem sido avaliado de forma bastante positiva por analistas nacionais e internacionais. Este artigo irá explorar dois pontos: qual a razão desta avaliação e o que nos diz o comportamento da taxa de câmbio, o preço da economia doméstica que funciona como vaso comunicante com a economia internacional, na crise atual e antes dela.

A avaliação positiva do comportamento do Brasil é calcada em dois fatores. Primeiro, o país está enfrentando a crise de crédito com melhores fundamentos econômicos, em especial do seu setor externo, do que tinha nas crises anteriores recentes. Segundo, até aqui os efeitos da atual crise sobre a economia brasileira foram pequenos em termos absolutos, e também em termos relativos se comparados aos efeitos das crises anteriores.

A economia mundial enfrentou fortes crises econômicas e financeiras comprimidas e encadeadas em dois períodos recentes: 1997 a 1998 e 2000 a 2002. O ano de 1997 foi marcado pelas mudanças de regimes cambiais na Ásia iniciadas pela flutuação do bath tailandês em julho. Em agosto de 1998, a Rússia desvalorizou fortemente o rublo e o deu o calote em títulos da dívida interna. A crise na Rússia e a forte aversão ao risco decorrentes dela foram ingredientes importantes no colapso do hedge fund LTCM em setembro. A bancarrota desorganizada deste fundo seria um evento tão forte para o mercado financeiro que o Fed organizou uma operação de salvamento. O desdobramento seguinte foi o corte de juros pelo Fed no final de setembro. Naquele ambiente de alta aversão ao risco e palidez da atividade econômica, um país com grandes vulnerabilidades externa e fiscal não conseguiria manter sua moeda apreciada. Em janeiro de 1999, o real abandonou o regime de câmbio deslizante e ficou livre para flutuar. E flutuou: em janeiro ele desvalorizou 70%. Em sua pior semana no ano, o real perdeu 31% de seu valor frente ao dólar. Nos anos de 1998 e 1999, o PIB brasileiro ficou praticamente parado. A crise que foi iniciada na Ásia em 1997 foi encerrada para o Brasil em 1999 com a mudança do regime cambial, com todos os custos que tais mudanças trazem para uma sociedade e sua economia.

O segundo período não foi menos turbulento que o primeiro. A bolha das empresas da internet estourou em abril de 2000. Quando a economia norte-americana já estava combalida por uma recessão, já em curso processo de relaxamento monetário promovido pelo Fed, ocorreu o ataque terrorista ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001. A crise Argentina, apesar de ter gerado efeitos globais inferiores aos das crises anteriores, contagiou os preços dos ativos brasileiros em 2001. Em 2002, a confiança dos investidores na governança das empresas dos EUA, um dos pilares do capitalismo, foi fortemente abalada pelos escândalos corporativos: fraudes em balanços de empresas como a Enron e a WorldCom. No front interno brasileiro, o país ainda se recuperava da crise do apagão e do contágio da crise Argentina em 2001 e os indicadores de vulnerabilidade externa ainda eram debilitados. Foi neste ambiente que se desenrolou a eleição presidencial de 2002. O temor de mudanças drásticas na política econômica para o mandato em disputa levou a probabilidade de default implícita nos preços da dívida externa do governo brasileiro a 70%, e fez o real desvalorizar 41% de junho a dezembro. Em sua pior semana, o real perdeu 18% de seu valor frente ao dólar. Em conseqüência, a taxa de juros básica no Brasil subiu 8,5 pontos percentuais de setembro de 2002 a março de 2003 (mesmo sob um regime de metas de inflação). A conta desta crise para o país foi alta.

De 2003 para cá, o novo governo manteve as linhas gerais da política econômica do governo anterior; a economia internacional viveu uma fase de fortíssimo crescimento; não houve crise econômica ou financeira relevante; os preços das commodities subiram muito; a desvalorização do real de 2002 lubrificou mais ainda as engrenagens da exportação brasileira; e a liquidez financeira global foi abundante. O resultado destes fatores favoráveis foi o fortalecimento do setor externo brasileiro: contas-correntes superavitárias, diminuição da dívida externa e acumulação das reservas internacionais, entre outros.

-------------------------------------------------------------------------------- O risco do real é similar aos riscos de moeda de países deficitários, tanto em períodos de tranqüilidade quanto na última crise --------------------------------------------------------------------------------

Assim, o Brasil chegou a julho deste ano com melhores indicadores do setor externo do que tinha no passado. Na pior fase da crise, o real depreciou 12%. Em sua pior semana, ele perdeu 9% de seu valor frente ao dólar. Mas voltou rapidamente, junto com os demais ativos internacionais. Hoje está mais forte do que antes da crise. É preciso ressaltar, contudo, que a crise de crédito até aqui não faz parte da mesma liga das crises anteriores - seus efeitos foram menos danosos.

O desempenho relativo do real, contudo, acende sinal de alerta. Vejamos o comportamento do real em relação a outras 30 moedas (frente ao dólar) negociadas nos mercados internacionais, durante a crise e antes dela. De janeiro até o início da crise, o real registrou a quinta maior volatilidade entre estas taxas de câmbio. Com maior volatilidade que o real, apenas as moedas da África do Sul, Turquia, Colômbia e Nova Zelândia. Com volatilidade imediatamente inferior, Hungria e Polônia.

No período da crise no qual todas estas moedas depreciaram, exceto o yen japonês, o real registrou a terceira maior desvalorização. Seus vizinhos neste ranking são praticamente os mesmos do ranking anterior. O real desvalorizou mais que as moedas da Austrália, Turquia, Hungria e África do Sul, e desvalorizou menos do que as moedas da Nova Zelândia e da Colômbia.

Todos os países citados acima têm setor externo muito frágil: registram déficits em conta-corrente há alguns anos e devem fechar o ano de 2007 com déficits superiores a 5% de seus respectivos PIBs (exceto a Polônia com 2%)! Já o Brasil deve atingir superávit de 0,7%. Sinal de alerta aceso: o risco do real, tanto em períodos de tranqüilidade quanto na última crise, é similar aos riscos de moeda de países deficitários sob o ponto de vista externo, mesmo em um período que o real apreciou muito.

A vulnerabilidade do setor externo não é o único determinante do risco da taxa de câmbio, nem a conta-corrente é o único indicador desta vulnerabilidade. Contudo, não tenho dúvida de que a constatação acima reflete alguma fragilidade de nossa moeda. Alguns são os candidatos a determinantes desta fragilidade, fundamentos econômicos ou não, tais como: fluxo cambial dependente de investimentos financeiros; alta taxa de juros domésticos em relação aos dos EUA; vulnerabilidade fiscal crescente; utilização do real por investidores internacionais como proxy para exposição ao risco de países emergentes. Caso haja um recrudescimento da crise atual ou outra fonte de turbulência externa, há indícios fortes de que a blindagem externa não seja tão espessa como avaliada. Em outras palavras, a desvalorização do real pode ser maior que o esperado hoje pelos analistas - o que acarretaria em uma combinação pior que a atual entre reservas, inflação e juros.

André d'Almeida Monteiro é sócio da Gávea Investimentos. A opinião do autor não reflete necessariamente a visão da Gávea Investimentos.