Título: CDOs ampliam crise imobiliária nos EUA
Autor: Mollenkamp, Carrick ; Ng, Serena
Fonte: Valor Econômico, 03/01/2008, Finanças, p. C8

Nos últimos anos, enquanto os Estados Unidos viveram um boom no valor dos imóveis e nos créditos imobiliários, os banqueiros encontraram maneiras cada vez mais astutas de empacotar trilhões de dólares em empréstimos, vendendo-os em fragmentos a investidores no mundo inteiro. Os financistas e as autoridades do mercado achavam que toda essa atividade dispersaria o risco e talvez até tornasse os mercados mais fortes e seguros.

Aí chegou a Norma. A Norma CDO I Ltd., seu nome completo, é parte de uma nova linhagem de investimentos em hipotecas criados no crepúsculo do boom imobiliário americano. Em vez de diluir o risco de empréstimos imobiliários, esses instrumentos multiplicaram e concentraram os feitos da crise das hipotecas "subprime", ou de alto risco. Eles estão por trás de dezenas de bilhões de dólares em baixas contábeis em alguns dos maiores bancos do mundo, como os US$ 9,4 bilhões anunciados no mês passado pelo Morgan Stanley.

A Norma mostra como investidores em Wall Street, no esforço de manter vivo um mercado lucrativo, deixaram que uma boa idéia fosse longe demais. Criado a pedido de um fundo de hedge do Estado americano de Illinois que buscava uma aposta sob medida em hipotecas subprime, o veículo de investimento foi criado pela Merrill Lynch & Co. e uma turma de sócios obscuros.

Ao usar esses novos derivativos, a Norma contribuiu para um mercado especulativo que superou o valor total das hipotecas subprime em que ele se baseou. Ela também integrava uma cadeia de investimentos ligados a hipotecas que assumiam fatias uns nos outros. A prática gerou comissões para um punhado de grandes bancos. Mas, dizem os críticos, ela criou pouco valor para os investidores de maneira geral.

"Todo mundo estava transferindo o risco para o próximo acordo e mantendo-o dentro de um sistema fechado", diz Ann Rutledge, dona da R&R Consulting, uma firma de Nova York focada em consultoria de finanças estruturadas. "Se você garante o meu risco e eu garanto o seu, nós podemos dar o valor que quisermos e gerar comissão em cima disso."

Apenas nove meses depois de vender US$ 1,5 bilhão em títulos para investidores, hoje a Norma vale uma pequena fração do seu valor original. As firmas de avaliação de risco, que antes aprovaram seus negócios, rebaixaram sua avaliação para alto risco.

O conceito por trás da Norma, conhecido como obrigação com dívida colateralizada, ou CDO na sigla em inglês, é usado desde os anos 80. Um CDO, numa definição ampla, é um meio de agrupar a renda de vários títulos de dívida, derivativos e outros investimentos. Um CDO de hipoteca pode conter pedaços de uma centena ou mais de outros títulos, cada um dos quais podendo conter milhares de hipotecas individuais. O ideal seria que essa diversificação deixasse os investidores em CDO menos vulneráveis ao problema de um único tomador de crédito imobiliário ou um só título de investimento.

O CDO emite uma nova série de papéis, cada um com um grau de risco diferente. As partes de um CDO com maior risco rendem mais. As fatias com risco menor, e nota de crédito mais alta, pagam menos. Quem investe nas fatias de risco menor recebe primeiro a renda dos investimentos da CDO; investidores com as partes de maior risco são os primeiros a levar prejuízo.

Mas a Norma e outros CDO semelhantes acrescentaram ao modelo mudanças sutis mas potencialmente letais. Em vez de diversificar seus investimentos, eles apostaram pesado em títulos com uma coisa em comum: estavam entre os mais vulneráveis ao aumento da inadimplência nos empréstimos "subprime", concedidos geralmente a tomadores com um fraco histórico de crédito. Embora isso tenha aumentando o retorno, também elevou as chances de os prejuízos atingirem os investidores duramente.

Esses CDOs também investiram em mais do que simples títulos garantidos por hipotecas. Eles tinham fatias uns dos outros, assim como contratos derivativos que lhes permitiam apostar em títulos garantidos por hipotecas que não detinham. Isso aumentou o risco. Os bancos de Wall Street puseram fatias grandes da Norma e de outros CDOs em seus balancetes, concentrando os prejuízos em vez de dispersá-los.

"É um novelo de riscos", diz sobre a Norma Janet Tavakoli, uma consultora especializada em CDO. "Em março de 2007, qualquer investidor mais sagaz teria jogado isso (...) no lixo".

A Norma foi desenvolvida num pequeno edifício de escritórios na costa norte de Long Island, em Nova York. Lá, um atarracado administrador de recursos de 37 anos chamado Corey Ribotsky dirige uma empresa chamada N.I.R. Group LLC.

A N.I.R. e suas filiadas compraram fatias em 300 empresas. A firma de Ribotsky chamou a atenção da Merrill Lynch & Co. em 2005. Principal subscritor de CDOs de 2004 a meados de 2007, a Merrill lucrou centenas de milhões de dólares montando e depois ajudando a distribuir CDOs garantidos por títulos imobiliários. Para cada CDO subscrito pela Merrilll, o banco de investimento ganhou comissão de 1% a 1,5% do valor total do negócio, ou até US$ 15 milhões num típico CDO de US$ 1 bilhão.

Para manter a receita das comissões, a Merrill contratava firmas de fora chamadas "administradoras de CDO". Ela as ajudava a levantar fundos, buscar os ativos para seus CDOs e encontrar investidores. Os administradores, por sua parte, escolhem os ativos e depois monitoram as garantias, ou colaterais, para os CDOs, embora muitos deles não precisem de um gerenciamento ativo.

A entrada de Ribotsky no mundo das administradoras de CDOs começou no Engineers Country Club de Long Island. Lá, em 2005, ele conheceu Mitchell Elman, um advogado criminalista de Nova York. Elman apresentou Ribotsky a Kenneth Margolis, um conhecido vendedor de CDOs no Merrill, segundo pessoas a par da situação. Elman não quis comentar.

Margolis, que em fevereiro de 2006 se tornou vice-diretor da divisão de CDO do Merrill, teve um papel importante na busca por firmas para administrar CDOs. Ele colocou Ribotsky em contato com algumas pessoas que tinham experiência no mercado de títulos imobiliários. Entre elas, dois ex-banqueiros do Wachovia Corp., Scott Shannon e Joseph Parish III, que saíram do banco e formaram sua própria firma de administração de CDOs.

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Ribotsky decidiu se associar a Shannon e Parish. "Parecia interessante, e foi assim que entramos nessa", diz Ribotsky. Paris e Shannon não quiseram falar sobre detalhes da Norma. O trio abriu a N.I.R. Capital Management, que durante o ano seguinte assumiu a administração de três CDOs subscritos pela Merrill.

Em 2006, Ribotsky diz que a Merrill foi até à N.I.R. com uma nova proposta: um dos clientes do banco de investimentos, um fundo de hedge, queria investir na parte mais arriscada de um certo tipo de CDO. "Já estava tudo organizado quando foi apresentado a nós", diz Ribotsky. "Eles entrevistaram um monte de administradores e escolheram a nossa equipe."

O CDO se chamaria Norma, em homenagem a uma constelação do hemisfério celestial sul. Segundo pessoas a par da questão, o fundo de hedge era o Magnetar, que leva o nome de uma poderosa estrela de nêutrons. O Magnetar não quis comentar.

Em 7 de dezembro de 2006, a Norma foi registrada com sede nas Ilhas Cayman. A N.I.R., sua administradora, ganharia comissão de 0,1%, ou cerca de US$ 1,5 milhão por ano. A Norma pertencia a uma classe de instrumentos chamado de CDOs "mezaninos", porque investia em títulos com avaliações de crédito medíocres, na maioria BBB. Apesar dos riscos, as CDOs mezanino passaram por um boom nos estágios finais do ciclo de crédito, à medida que investidores buscavam seus gordos retornos. No primeiro semestre de 2007, os emissores lançaram no mercado US$ 68 bilhões em CDOs de hipotecas contendo títulos com uma avaliação média de BBB ou semelhante - a avaliação de risco mais baixa para grau de investimento - e até piores, segundo uma pesquisa da Lehman Brothers Holdings Inc. Isso foi mais do que o dobro do nível de um ano antes.

Para a Norma, a N.I.R juntou US$ 1,5 bilhão em investimentos. A maioria não era em títulos de dívida, mas derivativos ligados a títulos imobiliários com avaliação BBB. Chamados "swap de crédito inadimplente", esses derivativos funcionavam como apólices de seguro para os títulos atrelados a empréstimos imobiliários residenciais de alto risco ou aos CDOs que os continham. A Norma, agindo como a seguradora, receberia regularmente um prêmio que repassaria aos seus investidores. Quem comprava a proteção, inicialmente a Merrill Lynch, receberia pagamentos da Norma se os títulos segurados tivessem perdas. Não está claro se a Merrill manteve essa garantia, ou a repassou a outros investidores que estariam compensando sua exposição às hipotecas de alto risco ou apostando num colapso geral do mercado.

Muitos bancos de investimentos favoreceram CDOs que continham esses swaps de dívida inadimplente, porque eles não exigiam a aquisição dos títulos em si, um processo que geralmente leva meses. Com esses swaps, um CDO bilionário poderia ser montado em semanas.

A princípio, os swaps ajudaram os bancos e outros investidores a repassar os riscos que não queriam manter. Mas no caso das hipotecas de alto risco, os derivativos amplificaram o efeito dos prejuízos, porque permitiram a criação de um número ilimitado de CDOs ligados aos mesmos títulos garantidos por hipotecas. A UBS Investment Research, uma divisão do banco suíço UBS AG, calcula que os CDOs venderam proteção de crédito equivalente a três vezes o verdadeiro valor de face dos títulos "subprime" de avaliação BBB.

A Norma, por sua parte, comprou cerca de US$ 90 milhões em títulos garantidos por hipotecas, ou 6% de seus investimentos. Disso, algumas eram fatias de outros CDOs, a maioria subscrita pela Merrill, segundo documentos analisados pelo Wall Street Journal. Entre esses CDOs está a Scorpius CDO Ltd., administrada por uma divisão da Cohen & Co., uma firma dirigida pelo antigo chefe de CDOs da Merrill Cristopher Ricciardi. Depois, a própria Norma estaria entre os ativos da Glacier Funding CDO V Ltd., administrada por um departamento da corretora Winter Group, de Nova York. Um representante da Winter Group disse que a empresa não quis comentar, assim como a Cohen & Co.

No início de 2007, a Norma estava pronta para enfrentar as firmas de avaliação de risco. As diferentes fatias de CDOs recebem avaliações diversas porque algumas protegem as outras das perdas causadas pela inadimplência. Uma fatia "júnior" pode levar os primeiros US$ 30 milhões em perdas de um CDO de US$ 1 bilhão, enquanto uma fatia "sênior" com avaliação AAA só será afetada quando as perdas chegarem a mais de US$ 200 milhões.

Mas o sistema apenas funciona se os títulos do CDO não tiverem perdas todos ao mesmo tempo. Os títulos de dívida emitidos por empresas, por exemplo, tendem a ter uma correlação baixa porque as companhias que os emitem operam em setores diferentes, que geralmente não enfrentam dificuldades simultaneamente.

Os títulos imobiliários, por sua vez, acabaram se mostrando muito parecidos uns com os outros. Todos eles são ligados a milhares de empréstimos nos EUA. Qualquer coisa grande o suficiente para gerar inadimplência numa parte substancial desses empréstimos - como queda no valor dos imóveis em todo o país - também deve afetar os títulos num CDO. Isso é especialmente verdadeiro para os tipos de títulos em que os CDOs mezanino apostaram. Os títulos BBB normalmente dão prejuízo se as perdas causadas pela inadimplência no conjunto de empréstimos que os formam chega a 10%.

Entretanto, quando as firmas de avaliação de risco analisaram a Norma, estavam fixadas num cenário anterior, em que a ascensão do valor dos imóveis e o crédito fácil mantinham em baixa a inadimplência das hipotecas de alto risco. Os documentos de divulgação da Norma citam vários riscos para os investidores, mas também afirmam que os títulos CDO tinham um alto nível de estabilidade na avaliação de risco.

Além disso, as firmas afirmam que tinham razão para acreditar que nem todos os títulos iriam azedar ao mesmo tempo quando o mercado entrasse em baixa. Primeiro, cada título tinha hipotecas de várias financeiras, então os padrões de empréstimo poderiam variar de um título para o outro. Cada título também tinha seu próprio time de empresas cobrando os pagamentos.

Em março, a Moody's Investors Services da Moody's Corp., a Standard & Poor's da McGraw-Hill Cos. e a Fitch Ratings da Fimalac SA deram sua aprovação à Norma. Em seu relatório, a Fitch citou preocupação com o setor de hipotecas de alto risco e o alto número de tomadores que obtiveram empréstimos sem comprovação de renda. Mesmo assim, todas as três firmas deram sua maior avaliação, AAA, para fatias que constituíam 75% do valor total dos CDOs.

Em setembro, a Norma apresentava problemas. Em meio ao declínio profundo do valor dos imóveis e à inadimplência crescente das hipotecas, o valor dos títulos garantidos por hipotecas subprime foi ao chão. Os analistas aumentaram suas estimativas do prejuízo total para 20% dos títulos garantidos por hipotecas emitidos em 2006.

Em outubro, a Moody's rabaixou US$ 33,4 bilhões em títulos garantidos por hipotecas, incluindo as seguradas pela Norma. Esse rebaixamento criou a base para uma revisão dos CDOs garantidas por esses títulos - e para novos rebaixamentos.

As firmas de avaliação de crédito dizem que seus relatórios em março representavam a melhor análise na época e classificaram a deterioração do mercado "subprime" como sem precedentes e inesperadamente rápida.