Título: A ética e o sentido da vida
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/01/2008, Opiniao, p. A10

Vivemos uma crise ética que pode por em risco o projeto de humanidade, caso seja levada às últimas conseqüências. No Brasil, há um passivo histórico elevado nesse campo, advindo das dívidas sociais acumuladas e também da relação predatória com o meio ambiente e com nossas riquezas. O que aprofunda e evidencia essa crise encontra-se no caldo de cultura fragmentada, dispersa e sem referência que se propaga na sociedade contemporânea, sob o nome de pós-modernidade. Há os que não aceitam o termo, por acreditarem que encerra em si a compreensão errônea de conclusão dos projetos da modernidade. A psicanalista Maria Rita Kehl, por exemplo, refere-se a essa nossa era como uma modernidade tardia.

O fato é que vivemos um momento tenso, marcado pelo individualismo exacerbado, com perigosas quebras de valores coletivos, comunitários e solidários. Se num primeiro momento, e a partir de determinada perspectiva histórica, o rompimento com sistemas e autoridades teve um viés nitidamente libertário, a apropriação dessa prática pelo pensamento neoliberal o escamoteia, conferindo-lhe caráter mais retrógrado do que propriamente progressista.

O resultado mais latente desse processo é a relativização excessiva defendida por muitos estudiosos atrelados à pós-modernidade, que apregoam o fim da História e das ideologias. Com isso, perdemos nossa referência de humanidade. Não defendo o retorno a uma verdade única e absoluta. Mesmo porque, se analisarmos o que esconde por trás da falsa liberdade propagandeada pelo pensamento neoliberal fragmentado, veremos que é justamente um discurso totalizante, massificador e sem respeito às pluralidades, às diferenças e que justifica, ainda que de maneira dissimulada, o preconceito. Um discurso que reduz a uma dimensão meramente pessoal e dissociada da dos valores comunitários o conceito das liberdades individuais, sobretudo da propriedade, do dinheiro e do lucro. E, se é fato que não haja uma verdade absoluta, também é fato que não podemos abrir mão de buscar a compreensão da totalidade dos fenômenos sociais, humanos, econômicos e culturais. Não podemos separar os meios dos fins, assim como não podemos separar corpo e mente, ciência e ética. É dessa unidade que necessitamos.

O que se desprende da concepção fragmentadora de mundo chega ao nosso cotidiano comprometendo as relações humanas de maneira dramática. Quando se interrompe a comunicação, o olhar, a escuta e o respeito pelo outro, emerge a violência, que tem na desigualdade social uma de suas mais contundentes expressões, deixando exposta a quebra de valores éticos de convivência e o comprometimento da própria unidade da espécie humana.

A concentração excessiva de riqueza, além de atingir os mais pobres, também tem efeitos danosos sobre os filhos das classes sociais mais abastadas por meio da ameaça do vazio existencial. A desigualdade, ela própria, se apresenta violenta, corrompendo os princípios elementares da dignidade humana, negando em muitos casos acesso à direitos essenciais como alimentação, moradia, educação de qualidade, saúde, trabalho. Para além da dimensão ética e humana, contrária à lógica da acumulação excessiva, há ainda a disseminação do consumismo irresponsável, numa sociedade que apela ao consumo, oferta uma série de oportunidades de bens materiais, mas restringe seu acesso porque não oferece as mesmas oportunidades a todos.

-------------------------------------------------------------------------------- A sociedade confina-se em seus sofrimentos particulares e isso pouco ajuda no processo de mobilização social --------------------------------------------------------------------------------

Da condição de desigualdade temos um dos principais fatores que põe em andamento um círculo vicioso de produção de outras violências que deixam pessoas, famílias e até comunidades inteiras ameaçadas pelo crime organizado. E isso atinge a sociedade como um todo, em toda estratificação social, ainda que de maneiras e intensidades distintas, porque as diferenças sociais se refletem também nesse campo.

Em outra ponta, a sociedade confina-se em seus sofrimentos particulares e isso pouco ajuda no processo de mobilização social que, felizmente e para nossa esperança, persiste. Mesmo que ainda careça de mais espaços de diálogo e interação, como bem defende Boaventura de Sousa Santos no que chama de teoria da tradução, são experiências, em esferas governamentais e não-governamentais, que tentam, em suas especificidades e demandas, reconstruir um espaço público, refazer o pacto social. Encontram-se aí, por exemplo, os projetos de economia solidária, das práticas de democracia participativa; os movimentos dos catadores de material reciclável, dos ambientalistas, dos trabalhadores sem-terra, da agricultura familiar e dos movimentos de democratização dos espaços urbanos, dentre tantos.

Muitos nos cobram a responsabilidade do Estado diante da situação. O mesmo Estado que foi fragilizado pelo modelo neoliberal. Digo que é legítima a cobrança, incluindo aí a responsabilidade disseminada entre todos os entes federados. No entanto, a mesma legitimidade deve nos levar também a questionar, com apuro, a responsabilidade de outros atores, a começar por nós mesmos, passando pelas muitas instituições: igrejas, escolas, empresas, associações, entidades representativas, mídia. Mas sem nunca esquecer da responsabilidade individual de cada um, pois já dizia Mahatma Gandhi: "façamos em nós as mudanças que cobramos dos outros".

A questão da sobrevivência do projeto humano nos põe questões graves, dentre os quais, o dever de impor limites éticos à propriedade, ao lucro e ao consumo em nome de uma vida social equilibrada e marcada por valores civilizatórios e emancipadores. Temos o compromisso com as gerações futuras de reconstruir e fazer valer o espaço coletivo cidadão. Estabelecer parâmetros humanos, solidários, medidas de defesa da vida como mediadores de nossas relações pessoais, sociais, culturais e econômicas.

Isso implica em reavaliar valores, restabelecer referências, mas também nos conduz a defender uma sociedade com mais justiça social. Que ela seja menos permeada pelo poder do dinheiro e mais pautada pelo direito da fruição da vida em todas as suas possibilidades, seguindo os mais avançados parâmetros iluministas de nossa ainda recalcitrante, mesmo que tardia, modernidade.

Patrus Ananias é ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.