Título: O sofrimento palestino se aprofunda
Autor: AbuZayd, Karen K.
Fonte: Valor Econômico, 06/02/2008, Opinião, p. A9

Gaza está se tornando o primeiro território a ser intencionalmente reduzido a um estado de abjeta destituição, com o conhecimento, aquiescência e - de acordo com alguns - encorajamento, da comunidade internacional. Uma comunidade que diz defender a dignidade de todo ser humano não deve permitir que isso aconteça.

Este pequeno território, com 40 quilômetros de comprimento e não mais de 10 de largura, foi tomado pela escuridão, quando às 20h do dia 21 de janeiro, cada um de seus 1,5 milhão de habitantes ficou sem luz elétrica. E uma nova etapa do sofrimento palestino começou. Três episódios marcaram recentemente a vida das pessoas em Gaza: o resultado das eleições de janeiro de 2006, a tomada do controle "de fato" pelo Hamas em junho passado e a decisão israelense em setembro 2007 de declarar Gaza "território hostil". Cada um destes episódios provocou restrições mais severas ao movimento de pessoas e mercadorias para dentro ou para fora de Gaza. Cada um destes episódios tirou um pouco de dignidade dos habitantes, alimentando um maior ressentimento em relação ao mundo exterior.

Desde 18 de janeiro, o dia em que Israel impôs o bloqueio, somente 32 caminhões carregados de suprimentos puderam entrar em Gaza, diante de uma media diária de 93 caminhões nas primeiras semanas de janeiro, e 250 antes de junho 2007. Os estoques de sal e açúcar do Programa Mundial de Alimentos da ONU já acabou em algumas areal, e o de carne está prestes a terminar.

Os fechamentos da fronteira de Gaza não têm precedentes. Os palestinos estão de fato, presos. A esmagadora maioria não pode sair ou entrar em Gaza. Sem combustível e peças de reposição, os serviços de saúde estão piorando a cada dia, enquanto os serviços de fornecimento de água tentam continuar funcionando. O fornecimento de eletricidade é esporádico e nestes últimos dias foi reduzido, assim como o fornecimento de combustível. Atualmente, os cortes de energia duram até oito horas consecutivas.

As importações de combustível de Israel recomeçaram em 22 de janeiro, com um total de 1,5 milhões de litros na semana até o dia 27, e para a semana seguinte, a previsão é de 2,2 milhões de litros. Mas, para satisfazer as necessidades da população local, ocorrem pelo menos 3 milhões de litros por semana, e uma reserva de 20 milhões.

Assim, o funcionamento intermitente da principal estação de bombeamento, que depende da eletricidade, está afetando o fornecimento de água potável para 600 mil palestinos. O estoque de medicamentos é pequeno e os hospitais estão paralisados pela falta de energia e carência de combustíveis para geradores. A infra-estrutura dos hospitais está se deteriorando já que equipamentos não podem ser reparados porque faltam peças de reposição.

É doloroso ver o impacto do fechamento dos hospitais, pois os pacientes precisam viajar para fora de Gaza para receber tratamento. Apesar da demanda por tratamento estar aumentando, e os padrões médicos declinando, o regime que rege os encaminhamentos médicos é cada vez mais severo. Muitos tiveram seu tratamento atrasado ou negado, piorando suas condições e causando mortes desnecessárias.

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Os padrões de vida em Gaza são inaceitáveis para um mundo que promove a eliminação da pobreza e o respeito aos direitos humanos: 35% da população vive com menos de dois dólares por dia, o desemprego é de cerca de 50%, e 80% sobrevive graças à assistência humanitária. As pessoas não estão conseguindo construir túmulos para os mortos, pois falta concreto. Os hospitais estão distribuindo lençóis para envolver os mortos.

Como chefe de uma agência humanitária e de desenvolvimento humano para refugiados palestinos, a UNRWA, estou extremamente preocupada com a completa falta de humanidade no bloqueio de Gaza. Fico perturbada com a indiferença mundial enquanto centenas de milhares de palestinos são castigados por atos que não cometeram.

Como parte de seu mandato, a UNRWA oferece serviços para melhorar as condições de vida, mas é impossível manter nossas operações quando o poder ocupante adota uma política como a atual. E já estivemos a ponto de suspender o programa de distribuição de alimentos quando Israel bloqueou a entrada das sacolas plásticas com as quais empacotamos nossa comida.

Hoje, como podemos encorajar a moderação entre os palestinos, ou incentivar a busca de soluções pacíficas? Já existem indicações de que a severidade do bloqueio está sendo manipulada por aqueles que não desejam paz.

O que deveríamos estar fazendo agora é alimentar a moderação e encorajar àqueles que acreditam que o futuro de Gaza depende de uma coexistência pacífica com seus vizinhos. Apoiamos os novos esforços de ressuscitar o processo de paz e de reativar a economia palestina. Estes pilares, nos quais a solução para a região deve ser construída, são os que estão sendo corroídos.

Há alguns dias, o poder de ocupação temporariamente permitiu que o povo de Gaza recebesse combustível e outros suprimentos. Fomos informados que a fronteira de Gaza será parcialmente aberta, permitindo que a UNRWA e outras organizações entrem com cerca de 50 caminhões por dia. Ninguém sabe quanto tempo isto durará nem quando recomeçará o bombardeamento de foguetes - que condenamos fortemente - o que levará a novos fechamentos dos postos de fronteira.

Nunca houve uma necessidade tão urgente de que a comunidade internacional aja para restaurar a normalidade em Gaza. Fome, doenças, comunidades raivosas não são bons parceiros para a paz.

Karen Koning AbuZayd é Comissária Geral da UNRWA - Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados Palestinos