Título: Governo protocola pedido de CPI para esvaziar estratégia da oposição
Autor: Costa, Raymundo; Ulhôa, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 07/02/2008, Politica, p. A4

Sob pressão da oposição, o Palácio do Planalto se antecipou e instruiu seus líderes no Senado a requerer a instalação de uma CPI para investigar gastos nos cartões de crédito do governo, os chamados cartões corporativos. De 2003 a 2007, os gastos com cartão atingiram a média anual de R$ 144,2 milhões. Semana passada, a ministra Matilde Ribeiro (Igualdade Racial) perdeu o cargo, acusada de gastos abusivos. O próprio líder do governo, Romero Jucá, recolheu as assinaturas e protocolou o pedido de CPI, logo depois da reabertura oficial do Congresso.

"O governo não tem o que esconder", disse Jucá. "Se alguém errou, errou individualmente e não em nome do governo". O presidente do Senado, Garibaldi Alves, que antes aconselhara a oposição a pensar duas vezes antes de propor a criação de uma CPI, mudou de idéia junto com o governo e passou a apoiar a iniciativa de Jucá: "O governo está certo e a nação quer apurar".

A surpreendente decisão do governo tem objetivos específicos. Primeiro, afastar do escândalo o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "O governo está tranqüilo", disse Jucá. "Os gastos não foram para o presidente ou para a família do presidente da República". O segundo propósito do governo é manter a investigação sob controle, como acontece, pelo menos até agora, com a CPI das Organizações Não-Governamentais (ONGs), na qual a oposição apostou todas suas fichas, ano passado, na expectativa de criar dificuldades para o governo.

Depois de várias manobras do governo para impedir sua instalação, a CPI das ONGs foi finalmente instalada em meados do segundo semestre de 2007, mas até agora serviu apenas para frustrar seus autores. O governo tem conseguido impedir a convocação de depoentes, quebras de sigilos e aprovação de requerimentos. Os problemas da oposição têm explicação: embora tenha dificuldades para formar maiorias no plenário do Senado, ao compor proporcionalmente as CPIs o governo consegue fazer prevalecer a força das bancadas, ao indica para integrá-las apenas senadores absolutamente leais.

Entre as assinaturas recolhidas por Jucá encontram-se petistas como Tião Viana (AC) e Eduardo Suplicy (SP), recém-chegados ao governo como Romeu Tuma (PTB) e líderes como Renato Casagrande (PSB) e Valdir Raupp, que comanda poderosa bancada do PMDB. Na avaliação de oposicionistas como Heráclito Fortes o governo deu "um tiro no pé". Entre aliados do presidente há quem suspeite que Heráclito tenha razão: CPIs sempre são instrumento de negociação entre congressistas e o Palácio do Planalto. No PMDB e outras agremiações governistas, por exemplo, já se avalia a CPI como uma oportunidade para negociação de cargos e verbas com o Palácio do Planalto.

A oposição já havia decidido propor a criação da CPI para investigar os gastos do governo. De início o líder do PSDB, Arthur Virgílio, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estavam reticentes, mas mudaram de opinião com as novas revelações sobre a maneira como o governo usa o cartão corporativo. O líder do DEM, José Agripino Maia (RN), também se preocupava com o fato de a criação de uma nova CPI esvaziar a investigação das ONGs, principalmente agora, quando a oposição tem expectativa de apresentar denúncias novas.

PSDB e DEM, no entanto, optaram por fazer o seu próprio pedido de CPI. Mas em vez de circunscrever a investigação aos senadores, planejam propor uma comissão mista, integrada também pelos deputados. É uma forma de driblar a maioria governista. Seja qual for a solução final - CPI apenas do Senado ou mista -, a oposição vislumbra uma oportunidade rara na investigação dos abusos cometidos por integrantes do governo. Há suspeitas mais graves de desvio do dinheiro público por parte do governo federal nas transferências voluntárias no Orçamento, por exemplo, mas os cartões são um assunto de fácil assimilação pela população, que bem conduzido pode render dividendos políticos que a oposição até agora não conseguiu no embate com o governo do presidente Lula.

"A CPI viável é a dos cartões, pelo que representa para a opinião pública. É muito fácil para a população entender o que aconteceu e se indignar. Os valores são pequenos, mas a irresponsabilidade que houve com o dinheiro público é bastante compreensível, independente se o cartão serviu para comprar apenas uma tapioca ou algo muito maior. Dizer que se gastou pouco é um argumento contra eles", diz o presidente do PSDB, senador Sérgio Guerra. Entre as diversas notícias de uso impróprio do cartão corporativo por autoridades, está o gasto de R$ 8 pelo ministro dos Esportes, Orlando Silva, para a compra deste lanche.

Guerra afirmou que o PSDB não deverá apoiar a instalação de uma CPI apenas no Senado. "A CPI mista será muito mais ativa, mobilizará mais o Congresso do que a Comissão em apenas uma das Casas", disse. O requerimento para a criação de uma CPI mista é do deputado tucano Carlos Sampaio (SP).

A intenção do partido não é questionar a existência dos cartões corporativos, criados durante o governo de Fernando Henrique Cardoso - "O cartão corporativo é um bom sistema. O problema não está no sistema, mas nas pessoas que o utilizam".

"O governo tomou a iniciativa com o objetivo de encobrir. Os gastos com o cartão corporativo são só a ponta do iceberg", disse Guerra. Ele, a exemplo dos líderes Arthur Virgílio e José Agripino, também apóia a proposta de a investigação compreender o período entre 1998 e 2008, ou seja, "comparar os gastos dos últimos dez anos", os governos de Lula e de Fernando Henrique Cardoso, como propôs Jucá.

"Não temos como fugir disso (a investigação do período FHC", disse Arthur Virgílio, "mas de 2008 para trás". O líder do DEM, José Agripino, concorda: "Não há denúncias pretéritas. Tem que começar pelas denúncias que estão sendo feitas. O foco não é FHC, é Matilde (Ribeiro), Lurian (filha do presidente)".

Guerra diz que o PSDB não tem interesse em investigar os gastos pessoais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seus filhos. "Nós não vamos apoiar a CPI contra as pessoas, contra fulano ou contra sicrano. O que queremos é mostrar um governo que reiteradamente dá demonstrações de pouco respeito ao dinheiro público", disse.

Agripino denomina a iniciativa de Romero Jucá de "CPI da Dissimulação", por julgar que ela foi requerida justamente para desviar o foco do que interessa.

Para Arthur Virgílio, o abuso na utilização do cartão corporativo é um exemplo "desse raciocínio torto que o governo tem desde o começo", ou seja, "a mistura do público com o privado". Um dos primeiros exemplos, segundo o tucano, foi o tratamento dado pelos petistas às agências reguladoras, "como se fossem do governo". Segundo o argumento de Arthur Virgílio, os petistas "eles acham, porque ganharam as eleições, que as agências não podem mandar mais que eles. Não entendem que as agências são do Estado e não do governo. É a mistura do público com o privado. Eles achavam que tinham salvo-conduto para fazer tudo".