Título: A pensão alimentícia e a carteira de trabalho
Autor: Romano , Débora
Fonte: Valor Econômico, 04/01/2008, Legislação & Tributos, p. E2

É de conhecimento geral que a falta de pagamento da pensão alimentícia pode determinar até a prisão do alimentante inadimplente. Se a situação já era ruim para estes trabalhadores, em 2008 ela poderá piorar: um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados prevê uma punição ainda maior. O Projeto de Lei nº 1.915, de 2007, do deputado Eliene Lima (PP-MT), que tramita em caráter conclusivo e será analisado pelas comissões de trabalho, de administração e serviço público e de Constituição e Justiça e de cidadania, pode tornar obrigatória a anotação, na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), da condição de devedor de pensão alimentícia do titular quando for o caso, obrigando o empregador a efetuar o desconto diretamente na folha de pagamento.

Discordamos desse projeto em vários aspectos e acreditamos que são muitas as razões que devem impedir sua aprovação. Antes de começar a analisar a intenção do legislador, precisamos destacar que o assunto deve ser visto sob o ponto de vista da legalidade em sentido amplo, ou seja, se o poder público pode, por uma lei, impor o registro de informação de falta de pagamento de pensão alimentícia na carteira de trabalho de um indivíduo. Creio que esta hipótese não é possível, pois é totalmente inconstitucional, segundo nossa opinião. Ela viola a Constituição Federal de 1988 - mais precisamente seu artigo 60, inciso IV, em uma de suas cláusulas pétreas (dos direitos e garantias individuais), e nem uma emenda constitucional pode restringir tais direitos, muito menos uma lei ordinária, hierarquicamente inferior.

O artigo 5º da Constituição Federal garante ser inviolável, dentre outros direitos, a intimidade, a honra e a imagem das pessoas, conforme prevê seu inciso X. Quando o projeto estabelece que se anote na CTPS do trabalhador uma condição de devedor de prestação alimentícia, determina que esta situação seja anotada em documento público, que tem ampla utilização para a pessoa, inclusive para identificação pessoal. Portanto, algo que é da esfera íntima, reservada deste indivíduo e de sua família. E, se analisarmos desta forma, perceberemos que o direito à imagem pública do trabalhador estará sendo violado, pois o prejuízo à esfera de intimidade do trabalhador decorre de tornar-se pública a existência de uma demanda judicial e de uma sentença que, por força do artigo 155, inciso II do Código de Processo Civil, correm em segredo de Justiça. Nem se argumente que, pelo ofício judicial, o empregador já conhece esta realidade, pois atualmente a informação é restrita ao departamento pessoal ou contábil da empresa, que processa as folhas de pagamento conforme determinado. É uma situação a ser pensada.

Além da questão da inconstitucionalidade, há que se considerar que o intuito da lei, por mais que vise, em tese, a proteção daqueles que dependem de pensão - sobretudo dos menores e incapazes -, desvirtua a natureza do documento, pois a função da carteira de trabalho, segundo o artigo 13 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é a anotação das informações de interesse trabalhista e previdenciário, sendo obrigatória mesmo nos contratos temporários. Portanto, conclui-se que o objetivo do projeto não é louvável. Pelo contrário, pode deixar brechas para a fraude, e o exemplo clássico é a hipótese de o trabalhador solicitar uma segunda via de sua carteira de trabalho - o que desvirtuará a intenção da lei, que é a proteção daqueles que dependem de pensão alimentícia.

Ademais, o projeto nos parece desnecessário sob outros aspectos, uma vez que a lei já dispõe de meios suficientes para tutelar os interesses dos alimentandos - não apenas pela coerção suprema, que é a prisão civil do alimentante inadimplente (conforme o artigo 733 do código processual), mas também pela responsabilização criminal do empregador que deixa de prestar as informações necessárias à execução do acordo ou sentença, ou de qualquer modo ajuda o devedor a eximir-se do pagamento (conforme o artigo 22 da Lei nº 5.478, de 1968, que prevê pena de seis meses a um ano de detenção, sem prejuízo da pena acessória de suspensão do emprego, de 30 a 90 dias).

-------------------------------------------------------------------------------- O prejuízo à intimidade do trabalhador decorre de tornar-se pública uma demanda que corre em segredo de Justiça --------------------------------------------------------------------------------

Sabemos que a falta de pagamento da pensão alimentícia pode ocorrer em inúmeras situações, e até por motivo de força maior. Neste caso, o empregado, por um infortúnio, pode não conseguir comprovar a ocorrência da força maior, tendo então que assumir o ônus da anotação desabonadora, que, aliás, é vedada pelo artigo 29, parágrafo 4º da CLT. É evidente que a anotação desabonadora poderá, ainda, dificultar a obtenção de um novo emprego, trazendo dificuldades ao trabalhador. Será preciso analisar com calma a situação. Uns poderão dizer que se tal observação não for desabonadora, isto não obstará a obtenção de uma nova colocação no mercado de trabalho. Mas será que o simples fato de constar tal anotação já não será desabonador? A questão é delicada e precisa ser analisada com cautela.

Quanto ao outro objetivo do projeto, que é o de proteger o direito do menor, porque prevê que o novo empregador seja cientificado da obrigatoriedade de descontar do holerite o valor relativo à pensão alimentícia, a que está obrigado seu empregado, embora sem gerar um custo adicional, obviamente não condiz com a realidade do país. Com milhões de desempregados, deve-se primeiro pensar em proteger a oportunidade de trabalho, pois a proteção ao direito de pensão dos que dependem dela já existe e é até severa, na medida em que prevê até pena de prisão pela falta de pagamento, independentemente do motivo.

Outro destaque do projeto que deve ser discutido é a medida que pretende, em tese, evitar que a mudança de emprego seja um óbice para o menor receber a pensão do pai, que poderia agir de má-fé e não informar tal alteração ao juízo responsável pelo processo. Ora, a lei existente no país já prevê outros mecanismos para resolver esta situação. Não será a anotação na CTPS do empregado o mecanismo mais eficaz para lidar com a questão. Por isso, é importante analisar com calma as intenções desse projeto.

Em relação ao argumento sobre o desvirtuamento do sentido da lei e de cada instituto, é bom lembrar que esta comunicação também vale para o PIS, com a ressalva de que, neste caso, não haveria a quebra da intimidade do trabalhador, já que a informação constaria apenas do sistema gestor. Portanto, a sugestão ao projeto é a alternativa de determinar a realização do registro, no PIS, desta informação de condição de devedor de pensão alimentícia, facilitando o desconto da pensão pela empresa e não prejudicaria a imagem do trabalhador - medida que parece-nos mais eficiente.

Vale destacar ainda que nos parece que o legislador quer criar mais um embaraço a este que já é minoria no país - o trabalhador com carteira assinada. Neste Brasil da informalidade, deve-se incentivar o contrário, e não criar dificuldades à obtenção de novos postos de trabalho. Esperamos que o projeto seja revisto e repensado, pois da forma que foi relatado para ser analisado nas comissões responsáveis na Câmara dos Deputados, é impraticável.

Débora Romano é advogada especialista em direito do trabalho e tributário e sócia titular do escritório Romano Advogados Associados

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