Título: E a vida foi toda pelo ralo
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 30/01/2011, Brasil, p. 11

Na cidade paulista que ficou inundada, a população não tem forças para recomeçar Franco da Rocha (SP) ¿ Dona Nelzi Silva tem 82 anos e desde que chegou à terceira idade demonstrava vitalidade e disposição de quem está disposta a viver muito. Demonstrava, pois em 11 de janeiro uma tragédia abateu o seu humilde lar e a velha senhora caiu em depressão. Não come, não sai de casa e chora todas as vezes que alguém pergunta se está tudo bem. ¿A água invadiu a minha casa em pouco mais de uma hora e perdi tudo o que eu tinha: geladeira, televisão, móveis. Fiquei só com a roupa do corpo, sem ânimo para nada, pois não tenho mais idade para recomeçar a vida¿, conta.

A queixa ¿perdi tudo¿ virou lugar comum na cidade de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Além de dona Nelzi, outras 120 famílias foram dormir em 10 de janeiro sob uma forte chuva que começou a noite e varou a madrugada. As ruas da cidade amanheceram alagadas, mas nada que uma galocha não resolvesse. No entanto, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) foi obrigada a abrir as comportas da represa Paiva Castro e a água do rio que passa ao lado da cidade invadiu casas, prédios públicos e o comércio em questão de horas. ¿Eu estava na sala assistindo televisão e, de repente, a água começou a entrar por baixo da porta. O volume foi aumentando e só deu tempo de tirar as tomadas da parede para evitar que alguém levasse choque. Perdemos tudo¿, conta o feirante Corsário Azevedo, 33 anos.

Corsário pagava com muita dificuldade as prestações da geladeira e do aparelho de DVD, comprados em 24 vezes num famoso magazine da cidade que anuncia ofertas no carnê. ¿A maior tristeza é ter que continuar pagando as prestações sem ter geladeira em casa e sem poder comprar outra porque a minha renda já está comprometida. Faltam dez mensalidades para quitar¿, lamenta, com os olhos marejados. ¿Roupas, os missionários da igreja deram para gente. Mas é duro perder tudo assim. É como se eu tivesse trabalhado em vão¿, compara.

Maria Clara Regina, 19 anos, também perdeu roupas, sapatos, os cadernos e os livros da escola. Ela foi outra que ganhou roupas de missionários religiosos e de uma corrente formada por voluntários. Mas como toda jovem da sua idade, ela reclama das roupas. ¿Pode parecer birra, mas não é. As roupas que ganhei cabem em mim, mas não têm nada a ver com o meu estilo¿, queixa-se.

Segundo o último balanço da Defesa Civil de São Paulo, pelo menos 25 pessoas já morreram por causa das chuvas desde o início do mês de dezembro em todo o estado. Até agora, 95 municípios foram atingidos pelas enchentes e quase 12 mil pessoas tiveram que abandonar suas casas. Em Franco da Rocha, a cidade ficou submersa por três dias e a inundação deixou debaixo d¿água o prédio da prefeitura, o fórum e a delegacia de polícia, além de 12 escolas e todo o comércio central. Na cidade, 120 famílias tiveram casas inundadas.

A família da estudante Fernanda Barbosa, 30 anos, também perdeu quase todos os pertences, assim como a maioria dos moradores da rua em que mora, na Vila Aparecida. Ela e sua irmã montaram uma cabana com lonas e plásticos na laje do terceiro pavimento da casa do cunhado, Luiz Carlos Gomes, 38. E contam que as duas famílias ficaram ilhadas por três dias só bebendo café preto com bolacha. ¿Nossa casa fica num terreno baixo e a água chegou a um metro e meio dentro da sala. O cheiro de esgoto era insuportável¿, relata Fernanda.

O aposentado Antônio Vieira dos Santos, 61 anos, desistiu de recomeçar. Ao contrário dos vizinhos que estão ¿se mexendo¿ para lavar o interior das residências e se cadastram para receber donativos, Antônio só faz beber cerveja. ¿Ele bebe todos os dias, coitado. Já trouxemos um colchão e lençol, mas ele se recusa a aceitar¿, conta a vizinha, Benedita Vilela, 55.

A casa de Antônio por dentro é o retrato da tragédia. A água subiu até a altura do seu pescoço, destruindo móveis e eletrodomésticos. A geladeira não funciona e virou armário. ¿Não vou comprar mais nada. Minha vida acabou¿, sentencia. Na parede da cozinha da casa de Antônio, há uma fenda com 10cm de espessura aberta pela força da água. Ele mostra, mas pede para não contar para ninguém da Defesa Civil. ¿Se eles virem esse buraco, vão mandar eu sair daqui dizendo que a casa vai cair sobre a minha cabeça.¿

Confusão na Justiça

Franco da Rocha (SP) ¿ A enchente que desabrigou 120 famílias em Franco da Rocha e inundou um bairro inteiro da cidade vai parar na Justiça. O presidente da Câmara dos Vereadores, Antônio Lopes da Silva (DEM), disse que pretende mover uma ação contra a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), já que as comportas da represa Paiva Castro foram abertas propositalmente. Ninguém na empresa do governo de São Paulo quis se manifestar. Segundo um laudo das operações do dia 11, ao qual o Correio teve acesso, na noite do dia 10, a vazão da água estava a 14m cúbicos por segundo. À meia-noite do dia 11, já estava a 20m cúbicos por segundo. Nesse momento, as ruas de Franco da Rocha estavam alagadas como ocorre quando desaba temporal na cidade.

Na madrugada, a vazão alcançava 80m cúbicos por segundo, água suficiente para deixar a parte baixa da cidade submersa. Pelo fato de a inundação ocorrer na madrugada, o desespero foi ainda maior. ¿Nunca houve uma enchente como essa. Como as comportas foram abertas pelas mãos do governo, ele vai ter de pagar pelo prejuízo¿, diz Maurício Vieira, 30 anos, presidente da comissão de moradores atingidos pela enchente.

No prédio da Câmara dos Vereadores, os prejuízos chegam a R$ 400 mil. Plenário, arquivo, cartório e gabinetes ficaram destruídos. Alguns documentos que foram encontrados molhados pegavam sol na sexta-feira para ver se podiam ser reaproveitados.

Na delegacia de Franco da Rocha, todos os inquéritos abertos se perderam e bandidos que já deveriam estar presos vão gozar de liberdade porque a investigação terá de ser refeita, já que não existe mais qualquer documentação. (UC)