Título: Da febre amarela à crise dos empréstimos podres
Autor: Moura, Alkimar
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2008, Opinião, p. A12

Nas últimas semanas, os habitantes de Lulândia fomos informados dos riscos de dois problemas epidemiológicos de natureza diversa, com algum potencial de contágio ainda a ser determinado pelos especialistas. Em primeiro lugar, o risco de saúde pública derivado da ampliação de contaminação pela febre amarela silvestre e, em segundo, o risco de a economia nacional ser, da mesma forma, contaminada pela crise dos empréstimos podres no setor imobiliário norte-americano (os subprimes). Embora fenômenos diferentes, ambos contêm elementos comuns, na medida em que seus efeitos maléficos podem ser e estão sendo amplificados pelo comportamento coletivo de cidadãos comuns e de investidores, os mais sofisticados.

A febre amarela silvestre, enquanto doença infecciosa de natureza viral, pode ter sua capacidade de contágio reduzida substancialmente, através da vacinação das pessoas com risco de contrair a febre, evitando transformar uma doença endêmica em uma epidemia. A disponibilidade de vacinas e também de informação são dois requisitos importantes para o sucesso no combate à doença. Se, no entanto, mesmo cidadãos com baixa probabilidade de contraírem a doença, acorrerem em massa aos postos de vacinação, isto pode diminuir a disponibilidade de tratamento para aqueles que realmente necessitem da vacina, aumentando desta forma o risco de maior número de pessoas se exporem à possibilidade de contraírem a doença. Como já comentado por especialistas em saúde pública, uma corrida indiscriminada da população aos postos de vacinação pode causar exatamente o efeito oposto ao que se deseja. Da mesma forma, uma corrida aos bancos, por clientes para sacar seus depósitos, pode acabar provocando uma crise de iliquidez no sistema bancário e a impossibilidade de todos os clientes reaverem seus recursos.

A crise do setor habitacional americano, decorrente do estouro da bolha imobiliária associada aos empréstimos de baixa qualidade, também tem a capacidade de contaminar a economia brasileira. De fato, parte da contaminação já está ocorrendo nos mercados de ativos, onde os ajustes de preços e volumes são mais rápidos. Devido à forte presença dos investidores estrangeiros no mercado, na medida em que eles redirecionam seus recursos de volta para títulos externos de baixo risco, eles exercem pressão baixista no mercado de ações e altista no mercado de câmbio, (desvalorizando o real, em relação ao dólar). Este é um movimento transitório de ajuste de carteira, que ocorre em função da mudança nos cenários de risco-retorno nas principais economias desenvolvidas, sobretudo nos Estados Unidos. O ajuste no mercado de ações tem maior visibilidade, pois são ativos mais líquidos, transacionados em mercados organizados, com negociações contínuas e sem interferência governamental. No entanto, tais movimentos podem se estender a outros títulos de renda fixa ou ativos imobiliários, onde seja acentuada a presença de investidores estrangeiros. A propósito, a elevação da taxa de juros nos mais recentes leilões de títulos do Tesouro e o cancelamento de algumas emissões de debêntures já comprovam os efeitos secundários do aumento da percepção de risco no mercado de valores mobiliários.

-------------------------------------------------------------------------------- Os choques negativos nos EUA se propagam pelos outros países, limitando a atuação estabilizadora dos demais blocos --------------------------------------------------------------------------------

A questão verdadeiramente interessante, para a qual as respostas são hipotéticas, (mesmo após o movimento não antecipado do Banco Central americano de redução da taxa básica de juros), diz respeito à capacidade desta crise de crédito atingir a economia real no Brasil, causando queda na atividade econômica, na renda e aumento no desemprego. Isto vai depender, de um lado, da intensidade e duração da crise na economia norte-americana e, de outro, da possível atuação compensatória dos demais blocos econômicos e economias nacionais (União Européia, Japão, China, Índia e outros). Estudos comparativos de estouros de bolhas no setor imobiliário e no mercado de ações mostram que as primeiras têm um efeito deletério mais profundo e duram mais tempo, em relação às bolhas no mercado acionário. Por exemplo, um estudo do FMI no World Economic Outlook de 2003 estimou que uma bolha de ações dura em média 2,5 anos e pode causar uma queda no produto de 4%, devido aos seus efeitos no consumo e investimento. Embora menos freqüentes, as bolhas imobiliárias são duas vezes mais danosas, pois duram mais tempo e produzem pior desempenho para a atividade econômica.

De outro lado, a capacidade de ações compensatórias por parte de outras economias subestima o grau de integração dos mercados financeiros e de capitais o que, por sua vez, indica que os choques negativos nos Estados Unidos se propagam pelos demais países, limitando a atuação estabilizadora dos demais blocos. Em outras palavras, a tão propalada hipótese do descasamento entre movimentos na economia norte-americana e nos demais países industrializados parece ter pequena sustentação empírica. Além disso, a intensidade da crise de crédito pode ser agravada pelo que se chama, na literatura especializada, de assimetria de volatilidade: choques financeiros negativos são mais perturbadores do que choque positivos.

Para concluir, pode-se esperar que o contágio da febre amarela silvestre dure menos do que o dos empréstimos podres. Já tivemos a experiência de um médico, especializado em saúde pública, cuidando da economia no Lula I. Certamente, no Lula II, vamos necessitar das competências de sanitaristas e de economistas para cuidar dos dois contágios.

Alkimar R. Moura é professor de Economia da FGV/SP. Alkimar.moura@fgv.br