Título: Teste do descolamento é na economia real
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 28/01/2008, Esoecial, p. A14

Mendonça de Barros, sócio da MB Associados, vê alguma desaceleração da economia brasileira neste ano, que pode ser reforçada pela crise externa O economista José Roberto Mendonça de Barros diz que a recessão nos Estados Unidos é inevitável, mas acredita que boa parte da economia no restante do mundo - o Brasil incluído - pode, sim, ser relativamente pouco afetada pela desaceleração americana. Para ele, se os EUA não passarem por uma contração brutal da atividade, há possibilidade de que prevaleça, em alguma medida, a tese do descolamento (o decoupling, em inglês). Isso não quer dizer, porém, que a crise nos EUA não terá conseqüências globais, avalia.

Para o ex-secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex) e sócio da MB Associados, o Japão deve desacelerar bastante, a Europa tende a crescer menos - "mas sem derreter" - e a Ásia deve continuar a avançar com força. Nesse cenário, "a América Latina sofre relativamente menos e o Brasil também", afirma Mendonça de Barros. E vê um quadro razoável para os preços de commodities, principalmente para as agrícolas.

Ele destaca, porém, que há muita incerteza quanto aos desdobramentos da crise americana. Ainda não é possível dizer se os cortes agressivos dos juros promovidos pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) conseguirão de fato evitar o pior, como uma crise sistêmica de crédito.

Mendonça de Barros diz que já projetava alguma desaceleração da economia brasileira neste ano, mesmo antes do agravamento da situação nos EUA. Para ele, a contribuição do setor externo para o crescimento deve ser ainda mais negativa, já que as importações tendem a aumentar bem mais que as exportações. O consumo também vai perder um pouco de fôlego, devido à redução da renda disponível das camadas mais pobres, causada pela forte alta dos preços de alimentos. Além disso, ele espera uma redução no ritmo de concessão de crédito neste ano, depois da expansão robusta de 2007. Muita gente está endividada e os bancos tendem a ser mais cautelosos na hora de emprestar, avalia ele. Com um cenário externo mais incerto e menor crescimento global, Mendonça de Barros reconhece que a sua estimativa de um crescimento de 4,7% em 2008 pode ser muito otimista.

Ele vê ainda um cenário um pouco pior para o investimento, entre outros motivos devido ao temor de falta de energia elétrica. As incertezas no cenário externo podem contribuir para desacelerar um pouco mais as decisões de investir das empresas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Os EUA vão conseguir evitar a recessão com o corte agressivo dos juros adotado pelo Fed e com o pacote fiscal apresentado pelo presidente George W. Bush?

José Roberto Mendonça de Barros: A política fiscal provavelmente vai ter uma contribuição modesta. Dada a situação fiscal americana, não se imagina que ela possa ser muito diferente. Acho que, na aflição, o mercado esperava demais algo que o presidente Bush não podia dar. Ele está fraco e a decisão é do Congresso. A política fiscal deve ajudar marginalmente. O pacote, se for como o anunciado, é pequeno em relação ao PIB e está todo mundo muito endividado. A probabilidade de resolver alguma coisa relevante parece pequena.

Valor: E o impacto da política monetária?

Mendonça de Barros: Esse movimento foi objeto de intensas discussões e críticas, mas alguém me chamou a atenção para um discurso do Frederic Mishkin, feito em 11 de janeiro. Ele é um dos membros do Fed, o que tem mais consistência. O discurso se chama "Monetary Policy Flexibility, Risk Management, and Financial Disruptions" (a íntegra está em: http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/mishkin20080111a.htm). Feito alguns dias antes do corte de 0,75 ponto percentual, é uma espécie de justificativa para o que fizeram. Vai pelo seguinte caminho: quando há uma crise financeira, a situação muda e as exigências de políticas de monetária mudam junto. Quando há stress financeiro, a probabilidade de ocorrer o pior cenário é muito grande. Vira quase uma profecia que se auto-realiza. A conclusão do discurso é que a política monetária tem que ter um bom timing, flexibilidade e ação decisiva. O timing é quando está se deteriorando a crise financeira, a ação decisiva é o corte de juros que eles deram, que foi inusitado, e a flexibilidade é para sugerir, provavelmente, que eles não vão deixar de olhar a inflação. Isso justificaria a ação do Fed. Mas ainda é difícil dizer muita coisa sobre a situação americana. Os cenários serão dramaticamente diferentes se essas medidas conseguirem estabilizar ou não o pessimismo. Uma recessão os EUA vão ter, isso está dado. Não há dúvida. A pergunta é se haverá uma recessão "normal", entre aspas, ou uma bomba atômica. Isso ninguém sabe. O que aparentemente detonou o intenso pessimismo foi a deterioração muito rápida das seguradoras de crédito. Se eu li corretamente o discurso do Mishkin, é mais ou menos por aí que eles tiveram que sair correndo, porque a situação evoluiu muito rapidamente.

Valor: Foi medo de uma crise sistêmica?

Mendonça de Barros: Exatamente. Se você não colocar fim ao processo de vendas de ativos, isso implica um forte aumento dos prejuízos, porque eles vão se desvalorizando cada vez mais, o que resulta numa contração de crédito cada vez maior. Os bancos ficam com menos dinheiro para emprestar e muito mais medo, porque estarão obrigados a buscar capital e vender ativos, e não em fazer crédito.

Valor: Havia um momento em que se dizia que a crise era de liquidez, mas não de solvência. O sr. acha que a crise já é de solvência?

Mendonça de Barros: Ainda não chegou nesse ponto. Mas obrigatoriamente você tem que fazer o que for necessário, se não vira profecia que se auto-realiza. Na quarta-feira, tudo indicava que o mercado melhorou em Nova York por causa das notícias sobre uma reunião de representantes do órgão regulador com o sistema financeiro, para tentar estudar modos de capitalizar as empresas de seguro de crédito, que estavam todas atrapalhadas. Aparentemente, essa é a raiz do problema.

Valor: Como fica o PIB americano neste ano?

Mendonça de Barros: Deve haver uma recessão, com fortíssima desaceleração da atividade econômica por dois ou três trimestres, quando o PIB pode evoluir negativamente. Mas, no acumulado do ano, o país deve crescer 1%, 1,1%. Esse é o nosso cenário básico. O cenário alternativo é muito mais grave. Se houver uma crise de crédito completa, certamente o tamanho da recessão será maior e aí sim vai afetar o mundo todo. Não haveria como sair ileso disso.

Valor: O Fed fez bem em agir como ele agiu?

Mendonça de Barros: Ele errou lá atrás, quando diminuiu o ritmo de queda dos juros (depois de ter cortado 0,5 ponto em setembro, o Fed fez dois cortes de 0,25 em outubro e dezembro), e o fez porque minimizou o tamanho da crise. Ele deveria ter mantido o ritmo de cortes de 0,5 ponto. A partir de um paper do Goldman Sachs, tornou-se sabedoria comum que as perdas detonadas pela crise do 'subprime' ficariam entre US$ 400 bilhões e US$ 600 bilhões. A questão é que até o momento só foram reconhecidos US$ 130 bilhões. O que há ainda para ser reconhecido ainda é muita coisa.

Valor: O tamanho da crise não está claro?

Mendonça de Barros: Ainda não está claro. Nós sabemos que é algo grande, mas não dá para saber o tamanho inteiro, porque ninguém tem os números consolidados. Acho que nem os bancos centrais têm. De qualquer modo, no nosso cenário básico, as medidas têm uma certa efetividade, é possível sentar organizadamente e resolver alguns problemas específicos, como a questão da recapitalização das instituições de seguro que se atrapalharam. Se isso se confirmar, acaba ainda por prevalecer uma certa questão do 'decoupling'. Um parêntese: muita gente está dizendo que o descolamento morreu porque as bolsas do mundo inteiro caíram. É um argumento equivocado. A idéia do descolamento se refere à economia real. O mercado financeiro está integrado no mundo inteiro. É impossível ocorrer uma queda forte numa bolsa importante sem que isso aconteça em outras praças. O teste de verdade é o que vai ocorrer com o ciclo econômico.

Valor: Qual é a sua expectativa?

-------------------------------------------------------------------------------- Nós sabemos que a crise é grande, mas não dá para saber o tamanho inteiro, porque ninguém tem os números consolidados" --------------------------------------------------------------------------------

Mendonça de Barros: Se a recessão for essa que nós estamos imaginando, a Europa deve sofrer, mas não derrete, principalmente se você leva em conta que o potencial de crescimento europeu é menor que o americano. O Japão deve desacelerar forte. A Ásia, porém, deve continuar a crescer bem, principalmente a China, mesmo se desacelerar um pouco. Se for isso, a América Latina sofre relativamente menos, e o Brasil também.

Valor: O que deve ocorre com os preços de commodities?

Mendonça de Barros: A hipótese nossa é que, se a recessão for essa que está aí, os preços de commodities agrícolas têm flutuação, balançam, mas não derretem, pelo simples motivo de que as condições que fazem os preços de produtos agrícolas ficarem elevados devem continuar. Há o programa de biocombustível nos EUA, que não vai ser alterado, porque isso tudo é feito em cima de subsídio do Tesouro e há o fato de que os consumidores estão comendo melhor na Ásia. Além disso, os estoques estão muito baixos. Nós não somos pessimistas, embora haverá mais volatilidade e talvez os preços não fiquem nos picos em que estavam. Já as matérias-primas industriais, como cobre, zinco e alumínio, devem sentir mais. A indústria americana tem uma certa importância e há também a desaceleração no Japão. Essas matérias-primas tendem a ser mais sensíveis e não há uma situação de fundamentos tão apertada como no caso dos agrícolas. O petróleo deve sentir um pouco, mas deve ter algum suporte, com a Ásia bombando e o próprio Oriente Médio consumindo muito o produto em seus programas de industrialização. Não deve ficar em US$ 100 o barril, mas talvez ainda seja um nível elevado.

Valor: E como fica o crescimento no Brasil?

Mendonça de Barros: Nós já tínhamos, antes do agravamento da crise, alguma desaceleração em relação a 2007. Nós estávamos com 4,7% para este ano (a MB estima que a economia tenha crescido 5,5% em 2007). Os motivos para a desaceleração são três. O primeiro é que nós devemos ter uma redução das exportações líquidas neste ano, ou seja, a contribuição negativa do setor externo para o crescimento será maior. O outro ponto é que os alimentos subiram 10% no ano passado. Isso comeu a renda da clientela do Bolsa Família e do salário mínimo. O consumo dessa faixa de renda mais baixa será um pouco contido. O terceiro motivo é que o crédito ao consumidor deveria ser um pouco mais dosado pelas instituições financeiras, com mais motivo ainda por causa dessa incerteza. O raciocínio que estava por trás, antes de se imaginar o derretimento do mercado financeiro, é simples. Como houve uma grande concessão de crédito no ano passado, é normal e natural que, quando você adiciona um estoque enorme de clientes que tinha pouco acesso ao crédito, um certo contingente desses clientes se atrapalhem. Eles não conseguem administrar as finanças de modo adequado e a inadimplência sobe. Esses três fatores estariam em jogo na nossa avaliação em qualquer circunstância.

Valor: O cenário externo intensifica a desaceleração?

Mendonça de Barros: Se você adicionar a esse cenário básico as incertezas no quadro internacional, ele fica reforçado. Primeiro, porque a turbulência gera incerteza, o que faz com que os doadores de crédito sejam ainda mais cautelosos do que seriam. Segundo, com a crise, o juro do pré longo (o swap de 360 dias, o juro privado de um ano) subiu, embora possa voltar a cair. Terceiro, é necessário considerar que no cenário de recessão "normal" lá fora, haverá menos crédito, pelo menos por um determinado período. IPOs são adiados, os bancos que concedem crédito lá de fora vão ser mais cautelosos. Tudo isso leva a reforçar a idéia de que quem concede crédito será mais cauteloso neste ano e isso ajuda a derrubar um pouco o consumo, e portanto, o PIB. Nós não revisamos o número ainda, mas no cenário para o crescimento neste ano, a economia descreve uma trajetória exatamente oposta à ocorrida no ano passado. O ano abre muito aquecido, porque fechou 2007 muito aquecido e, na ponta, vai desaquecendo. Na nossa previsão, ele termina o quarto trimestre em 3,9% em termos anualizados. Nós vamos ter provavelmente que revisar isso um pouco mais para baixo. O cenário de desaceleração fica um pouco mais forte.

Valor: O número de 4,7% passou a ser otimista?

Mendonça de Barros: Aparentemente ficou. O viés é de baixa. E uma observação importante é que o cenário de investimento para o Brasil mudou muito rápido do fim do ano passado para cá. Primeiro, o cenário político está um pouco mais azedo do que estava. O melhor indicador é a questão da CPMF. Ela não foi aprovada, colocando o governo numa situação mais difícil, mais delicada. Segundo, por causa da falta de chuva, um cenário que estava aparentemente mais distante ficou mais próximo, que é a restrição de energia elétrica. É algo que limita e atrapalha a decisão de investir. Terceiro, aumentou a incerteza externa. Objetivamente é possível que tenhamos um pouco menos de investimentos estrangeiros diretos. Esperaria que não apenas o PIB, mas, à medida que for caminhando para o fim deste ano e o começo do ano que vem, a taxa de investimento também se reduza um pouco.

Valor: O sr. já ouviu de clientes alguma coisa nesse sentido?

Mendonça de Barros: Já. Não por causa da crise externa, mas da crise de energia. Restrição de energia elétrica é complicado. Não é possível ligar meia máquina. Muita gente está muito preocupada com a energia. E não é apenas a disponibilidade de energia, é o preço também. Nós sempre dissemos que, antes de apagão, nós teríamos tarifão. E o tarifão já chegou. É só olhar o preço da energia elétrica no mercado livre. Acho que a desaceleração é algo que já estava no rol das coisas e fica um pouco mais forte, mesmo no melhor cenário lá fora.

Valor: E a política monetária?

Mendonça de Barros: É a questão mais difícil. O câmbio é uma dúvida. Num cenário de uma recessão mais suave, o câmbio não deve subir muito nem apreciar muito. A previsão para o saldo comercial vai ter que ser revisada, para baixo. Nós estávamos com US$ 29,5 bilhões. O que vai fazer diferença é quanto a situação internacional vai ajudar na questão da inflação e, por tabela, no rumo da política monetária. Nesse cenário de recessão mais suave, há alguma ajuda para a inflação, um pouco pela queda das commodities, um pouco porque vai haver menos crescimento mais à frente, mas não é algo que vai facilitar demais a vida do BC. A demanda vai encolher mais suavemente, o que demora para reduzir as pressões. Num cenário de recessão mais forte, a inflação tenderia a ser francamente ajudada, porque cairiam fortemente os preços de commodities. O cenário inflacionário fica um pouco mais tranqüilo.

Valor: O sr. acha possível que o câmbio atinja R$ 2?

Mendonça de Barros: Por enquanto, eu não trabalho com esse cenário. O dólar mexeu pouco até o momento. Nós estamos com uma previsão para o câmbio neste ano de algo entre R$ 1,70 e R$ 1,80. Mas não pense que tem muita esperteza aí, tem mais a nossa ignorância para onde as coisas estão indo. Em princípio, nós pensamos numa coisa meio neutra.

Valor: O país está de fato mais preparado desta vez para enfrentar a crise internacional?

Mendonça de Barros: No setor externo, sem dúvida. Basta olhar as reservas. E são reservas que são caixa próprio, não reservas de capital de curto prazo.

Valor: O que diferencia essa crise das anteriores, como as dos anos 90 e começo dos anos 2000?

Mendonça de Barros: Ela foi pior, porque a evolução das circunstâncias foi de tal natureza que o que se imaginava que a securitização seria capaz de fazer a para estabilização dos mercados internacionais não se verificou. A hipótese básica é que, quando você generaliza a securitização, num evento de um ajuste necessário de preços, os prejuízos vão estar diluídos entre os detentores dos papéis. Só que isso foi adiante e a coisa de securitização teve dois desdobramentos que não estavam no programa. Muitos dos fundos que administram papéis securitizados se alavancaram com empréstimos bancários. Então voltou para o banco. O que é um SIV (Special Investment Vehicle)? É um fundo de títulos securitizados, só que na prática continua sendo o risco do banco. Não funcionou o modelo de securitização. Segundo, junto com a securitização, o que cresceu muito foi o mercado de balcão, sem nenhuma regulamentação e sem nenhuma informação adequada. Na hora do vamos ver, não é possível saber quem carrega que risco. E aí todo mundo apavorado. Esse mercado de balcão não regulado, que era tido como o futuro, a esta altura ficou complicado.