Título: Dois futuros energéticos
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 22/01/2008, Opinião, p. A10

Em torno de 2100, o sistema energético mundial será radicalmente diferente do que temos hoje. Energias renováveis como solar, eólica, hidrelétrica e biocombustíveis constituirão uma parcela maior do mix energético, e a energia nuclear também terá participação significativa. Os humanos terão descoberto maneiras de lidar com a poluição do ar e com as emissões de gases que provocam o efeito estufa. Novas tecnologias terão diminuído a quantidade de energia necessária para acionar edifícios e veículos.

Com efeito, o futuro distante parece promissor, porém muita coisa depende de como chegaremos lá. Existem dois caminhos possíveis. Um primeiro cenário poderia ser denominado "Individualista". Como um rally fora-de-estrada através de um deserto montanhoso, essa opção promete emoção e competição feroz. Mas, a consequência involuntária de "mais pressa" será, com freqüência, "menos velocidade", e muitos se acidentarão ao longo do caminho.

O cenário alternativo pode ser denominado "Projeto Comum", e sugere um progresso cauteloso, com alguns avanços ilusórios, em estradas ainda em construção. Se chegaremos em segurança a nosso destino irá depender da disciplina dos pilotos e da engenhosidade de todos os envolvidos no esforço. Inovações tecnológicas justificam o entusiasmo.

Independentemente do caminho que escolhermos, os atuais dilemas do mundo limitam nossa margem de manobra. Estamos passando por uma mudança incremental na taxa de crescimento da demanda energética devido ao crescimento populacional e ao desenvolvimento econômico. Após 2015, reservas facilmente acessíveis de petróleo e gás provavelmente já não acompanharão o crescimento da demanda.

Em conseqüência, teremos de recorrer, necessariamente, a outras fontes de energia - renováveis, sim, mas também a mais energia nuclear e a combustíveis fósseis não convencionais, como areia petrolífera. Usar mais energia implica inevitavelmente emitir mais CO2, num momento em que as mudanças climáticas tornaram-se uma questão mundial crítica.

No primeiro cenário, os países apresssam-se em assegurar recursos energéticos para si próprios, temendo que a segurança energética é um jogo de soma zero, com nítidos vencedores e perdedores. O uso de carvão local e biocombustíveis originário dos próprios países cresceria rapidamente. Tomando o caminho de menor resistência, as autoridades governamentais prestariam escassa atenção à contenção do consumo energético - até que haveria escassez de suprimentos. Nessa mesma linha, apesar de muita retórica, as emissões de gases-estufa não seriam seriamente atacadas até que graves choques desencadeassem reações políticas. Uma vez que essas reações estão atrasadas, elas são severas e resultam em picos e volatilidade nos preços de energia.

O cenário "Projeto Comum" é menos doloroso, ainda que seu ponto de partida seja mais desordenado. Surgem numerosas coalizões com o objetivo de enfrentar os desafios de desenvolvimento econômico, segurança energética e poluição ambiental através de cooperação internacional. Muita inovação acontece em nível local, à medida que cidades importantes desenvolvem vínculos com a indústria para reduzir emissões locais. Governos nacionais adotam padrões de eficiência, impostos e outros instrumentos de política para melhorar o desempenho ambiental de edifícios, veículos e combustíveis para os transportes.

-------------------------------------------------------------------------------- Saberemos dentro de alguns anos se a declaração de Bali sobre mudanças climáticas foi apenas retórica ou o início de um esforço mundial para enfrentá-las --------------------------------------------------------------------------------

Além disso, à medida que crescer o empenho em harmonização, haverá uma convergência das políticas em todo o mundo. Esquemas de limites e comercialização de direitos de emissão que impõem um preço às emissões de CO2 pelas indústrias conquistam aceitação internacional. Os preços crescentes das emissões de CO2, por seu turno, aceleram inovações, produzindo inovações radicais. Um número crescente de carros são movidos a eletricidade e hidrogênio, ao passo que indústrias são equipadas com tecnologia para capturar CO2 e armazená-lo subterraneamente.

Contra o pano de fundo desses dois cenários igualmente plausíveis, saberemos apenas dentro de alguns anos se a declaração de Bali sobre mudanças climáticas, firmada em dezembro passado, foi apenas retórica ou o início de um esforço mundial para enfrentá-las. Muita coisa dependerá de como evoluirão as atitudes na China, União Européia (UE), Índia e EUA.

A Shell emprega tradicionalmente seus cenários para preparar-se para o futuro sem manifestar predileção por um mais do que por outro. Mas diante da necessidade de lidar com o risco climático em benefício de nossos investidores e de nossos descendentes, acreditamos que as promessas do "Projeto Comum" proporcionam o melhor equilíbrio entre economia, energia e meio ambiente. Para obtermos uma segunda opinião, consultamos os cálculos de mudanças climáticas elaborados pelo Instituto de Technologia de Massachusetts (MIT). Esses cálculos apontam que um mundo resultante do esquema "Projeto Comum" com captura e armazenamento de CO2 resulta na menor dimensão de mudança climática, desde que as emissões de outros importantes gases-estufa provocadas pelo homem sejam igualmente reduzidas.

Mas o cenário "Projeto Comum" poderá ser concretizado apenas se as autoridades governamentais acordarem em torno de uma abordagem mundial para o comércio de direitos de emissão e fomentarem ativamente iniciativas de eficiência energética e de novas tecnologias em quatro setores: em aquecimento e geração de eletricidade na indústria, em transportes e em edifícios.

Isso exigirá trabalho duro, e não temos muito tempo. Por exemplo, a alternativa "Projeto Comum" tem como hipótese a captura, em torno de 2050, de 90% do CO2 gerado por todas as usinas produtoras de eletricidade a carvão e gás nos países desenvolvidos, bem como ao menos 50% dessa emissão em países não pertencentes à Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Atualmente, nenhum desses países captura CO2. Uma vez que a captura e armazenamento de CO2 acrescenta custos e não produz receitas, o apoio de governos é necessário viabilizar rapidamente esse cenário em escala suficientemente grande para afetar as emissões mundiais. No mínimo, as empresas deveriam acumular créditos de carbono em troca do CO2 que capturarem e armazenarem.

Viabilizar o esquema "Projeto Comum" não será fácil. Mas oferece ao mundo a melhor chance de viabilizar um futuro energético sustentável, de modo que deveríamos explorar esse caminho com a mesma engenhosidade e persistência que levaram os humanos à Lua e que criaram a era digital.

O mundo tem pela frente uma longa viagem, antes que estabeleça um sistema energético que gere baixas quantidades de carbono. As empresas podem sugerir caminhos possíveis para chegar lá, mas os governos estão no comando do planeta. E os governos decidirão se devemos nos preparar para competição encarniçada ou um verdadeiro esforço de equipe.

Jeroen van der Veer, executivo-chefe da Royal Dutch Shell, é líder de Comunidade Energética da parceria do setor energético do Fórum Econômico Mundial (2007-2008) e é o presidente, neste ano, da Cúpula de Energia em Davos. Ele também preside o grupo de trabalho Energia e Mudanças Climáticas da Mesa Redonda de Industriais Europeus. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org