Título: Mutirão faz casa firme para quem não tem teto
Autor: Agostine , Cristiane
Fonte: Valor Econômico, 22/01/2008, Especial, p. F2

Casa emergencial montada em Itapeva (SP) pela ONG Um Teto para Meu País: mobilização de esforços de voluntários e moradores com apoio corporativo A ferradura da sorte, pendurada em cima da porta, e o certificado de entrega da casa exposto na parede, como um diploma, simbolizam um novo começo para Natalino Beraldo de Moraes, sua mulher Zenilda e as filhas Adriana e Alessandra. A casa nova, para onde se mudou há um mês, já tem as marcas da família: um banquinho colorido que faz as vezes de degrau para limpar os pés da terra vermelha do chão; colchas coloridas nas camas e móveis impecáveis.

Antes, moravam num barraco, improvisado com pedaços de madeira e papelão; algumas pedras seguravam as telhas. "Quando chovia, vinha água de tudo quanto é lugar", lembra Natalino. "Agora mudou bem. Gostei porque a casa é mais bonita", anima-se. E faz planos. Entre eles, o de construir um banheiro no lugar da fossa que fica nos fundos da habitação, em Itapeva, interior de São Paulo.

Natalino, de 46 anos, foi um dos primeiros moradores das casas emergenciais construídas no Brasil pela ONG Um Teto para Meu País. A entidade atua em nove países da América Latina e em dez anos de trabalho construiu mais de 32 mil casas emergenciais para famílias de baixa renda, a grande maioria no Chile.

Em parceria com empresas como a Orsa, Prosegur e Umicore, o projeto social ajudou outras 84 famílias a começarem o ano em uma casa nova. Para 2008 a previsão é construir 300 casas.

As habitações entregues pela ONG são de madeira e cada família paga uma contrapartida R$ 120. O custo total da casa é de R$ 2,5 mil e o restante é bancado pelas parcerias com empresas.

Conseguir juntar dinheiro para construir ou melhorar a casa não é tarefa fácil para famílias como a de Natalino, que ganha cerca de R$ 3 por dia cortando lenha e fazendo bicos.

O pagamento, entretanto, tem um "efeito mais simbólico do que financeiro", considera a coordenadora social da ONG, Larissa Dantas. "A família precisa ter a idéia de que está comprando a casa e que precisa se esforçar para isso", explica. Para quem recebe as moradias, o custo não chega a 5% do valor total.

A arrecadação de recursos para a construção das casas e a mobilização de voluntários lembra um mutirão, onde cada um faz um pouco. O Grupo Orsa, do setor de celulose, por meio da Fundação Orsa, doou as madeiras para as 85 habitações construídas no ano passado. A Prosegur, multinacional do setor de segurança, mobilizou funcionários para ajudar nas construções. Outras empresas, como Maggion (setor automobilístico); Umicore (tecnologia de materiais) e MTP (metalurgia de tubos) ajudaram com recursos que foram utilizados para a compra de pregos e ferramentas e para a alimentação dos voluntários. Cada mutirão mobiliza até 70 pessoas, a maioria recrutada em universidades como USP, Unesp e PUC.

Fora do país, a ONG conta com o apoio de empresas como Coca-Cola, Unilever e banco Santander. Reconhecida nacionalmente no Chile, onde foi criada há dez anos, a entidade social conseguiu arrecadar naquele país US$ 2,6 milhões em 2006. Lá, com o trabalho voluntário de mais de 120 mil pessoas, foram construídas cerca de 30 mil casas emergenciais, de madeira, como as do Brasil, e mil casas definitivas.

Em 2007, primeiro ano de funcionamento no Brasil da Um Teto Para Meu País, as construções concentraram-se em Guarulhos e em Itapeva, no interior paulista, perto da divisa com o Paraná. A região de Itapeva apresenta os mais baixos números do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado - que analisa a renda, educação, expectativa de vida e natalidade. Na realidade local, isso se traduz nas ruas sem asfalto, na falta de encanamento, água tratada e iluminação pública e pelas crianças com desnutrição e doenças causadas por parasitas. No bairro onde Natalino mora, dá para contar nos dedos as casas que têm caixa d´agua.

Em Itapeva, a Fundação Orsa, uma das patrocinadoras, realiza trabalhos sociais e negociou com a ONG para que os voluntários concentrassem as construções lá. Para o coordenador de projetos da fundação em Itapeva, Evandro Biancarelli, a construção de casas amplia o impacto do trabalho voltado à saúde das famílias: "As condições de saneamento de muitas casas são as piores possíveis. Para acabar com a desnutrição e com doenças que atingem as crianças temos que tratar também das moradias e melhorá-las", diz Biancarelli.

No município de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, a Prosegur estimulou seu quadro de funcionários a participar da construção das casas e mobilizou 35 empregados brasileiros, além de trazer dez trabalhadores das unidades da França e da Espanha.

Paula Gomes de Assis, de 34 anos, analista de treinamento na empresa, ajudou nas obras em Guarulhos: "A sensação é diferente de fazer uma doação ou de visitar uma instituição. Na construção a gente tem a preocupação de deixar tudo perfeito, de fazer a melhor casa possível para uma família", conta. "Vivenciamos parte dos problemas e tentamos ajudar. Sentimos o impacto que é ter uma casa na vida dessas famílias". Guarulhos tem a segunda maior concentração de favelas do Estado. Para a diretora de Recursos Humanos da Prosegur, Léia Morelli, esse trabalho representa uma oportunidade de realizar um projeto de responsabilidade social.

O contato com comunidades carentes e com realidades sociais distintas atrai, além dos funcionários das empresas, muitos jovens universitários. Durante os mutirões não é difícil ouvir um "portunhol" nos canteiros: voluntários de El Salvador, Chile, Peru e de outros países latino-americanos viajam entre os países "hermanos" para ajudar nas obras. E os brasileiros já começaram a cruzar fronteiras para erguer habitações em cidades que sofreram desastres naturais, como os terremotos que destruíram milhares de casas no Peru no ano passado.

-------------------------------------------------------------------------------- "A família precisa ter a idéia de que está comprando a casa e que precisa se esforçar para isso" --------------------------------------------------------------------------------

Os jovens representam a principal mão-de-obra: cavam, carregam pesadas placas de madeira, levantam as paredes, martelam e pregam telhas. A casa, de 18 metros quadrados, é pré-fabricada e só começa a ser montada depois que forem fixados troncos de madeira no chão. Em cima deles é colocado o piso para que a moradia fique acima do nível do solo, dificultando a entrada de ratos e de água de enchente, problemas comuns nas comunidades. O trabalho leva pelo menos um fim de semana, mas nas últimas construções os grupos de voluntários ergueram uma casa por dia.

William José Valentim, de 22 anos, trabalhou em uma das obras feitas em Itapeva. A movimentação na casa em que o jovem trabalhava atraiu dezenas de crianças da comunidade e jovens da vizinhança, que ajudaram a serrar tábuas e a carregar placas de madeira. "Para mim era um desafio voltar ao bairro de Santa Maria, depois de ter saído há mais de dez anos de lá", recorda. Para o estudante de pedagogia, a experiência o ajudou a superar o medo de reencontrar gangues rivais, com quem o jovem teve problemas sérios. "Encontrei antigos inimigos e, para minha surpresa, ficamos amigos", comemora.

O mutirão dos voluntários ajuda algumas famílias a terem melhores condições de vida. Na viela de número seis da favela Hatsuta, em Guarulhos, a casa de Aleandra Santos Silva alagava toda vez que chovia e a jovem de 28 anos tinha de segurar as telhas com uma vassoura para não perdê-las. O medo de ver a casa soterrada por um desmoronamento fez com que Aleandra deixasse sua a filha Sara, de dez anos, morando com um parente.

Dos trabalhos como doméstica e em bicos na reciclagem de materiais, ela conseguiu juntar R$ 120 para comprar a casa de madeira. "Agora que eu estou na casa nova já posso trazer a Sara, minha filha, de volta", anima-se. "Só precisava de uma ajuda."

As casas de madeira construídas têm caráter provisório e a estimativa é que durem sete anos. A intenção do projeto, explica a ONG, é de dar um suporte para que as famílias consigam lutar por habitações melhores. "A casa dura o quanto a família conseguir cuidar", diz Larissa, coordenadora social da ONG. "Se passar verniz, óleo queimado, se cuidar direitinho ela dura mais."

Feita toda de placas de madeira, a casa é removível. "Esse é um jeito de evitar problemas em terrenos que ainda não foram legalizados pela prefeitura ou têm um proprietário", afirma a coordenadora social da ONG.

Rita de Cássia Escrivani Fialio, de 40 anos, mãe de nove filhos, não planeja sair da favela de Itapejica, em Guarulhos, nem da casa de madeira que comprou com suas economias, caso seja obrigada a desocupar a área. Antes da nova moradia, Rita teve de deixar às pressas o barraco onde morava, que corria risco de desabamento, e por cinco meses ela morou em uma igreja da vizinhança. Na época, estava grávida de quatro meses. "Agora eu não deixo essa casa por nada", diz, instalada há nove meses em novo endereço.

No universo dos números, Rita entraria nas estatísticas das milhares de famílias que não têm um teto para morar. No Brasil, o déficit habitacional é calculado em mais de 7,9 milhões de casas, segundo estudo da Fundação João Pinheiro e do Ministério das Cidades, com base na Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2005. Em São Paulo, está a maior deficiência, 18,9% do total do país, e estima-se que para resolver o problema habitacional seria necessário construir pelo menos 1,5 milhão de casas.

Mesmo na moradia nova, Rita ainda sofre com a falta de água tratada e de esgoto. Não há banheiro, apenas uma fossa que fica do lado da habitação. As dificuldades que afetam a favela de Itapejica atingem um contingente expressivo de famílias no Brasil: uma em cada quatro casas no país tem problemas nos serviços de infra-estrutura, de acordo com dados do PNAD.

A casa emergencial é a primeira fase do projeto. Depois, as famílias recebem assessoria jurídica - em muitos casos para ajudar na regularização do terreno -, microcrédito e serviços de Saúde. Dos nove países onde a ONG atua, Argentina, Peru e El Salvador estão na segunda fase. A última etapa é a de construção de moradias definitivas. Só o Chile chegou até agora à última fase.

Foi em uma situação de emergência que Cristiana Lima de Araujo entrou na lista das construções, em dezembro. Duas semanas antes, a casa onde a jovem de 20 anos morava com a filha Monique, de quatro anos, foi destruída por um incêndio, no meio da madrugada.

No terreno sobraram apenas madeira queimada e pedras. Cristiana tinha acabado de mobiliar a casa e todos os móveis foram destruídos pelo fogo. O carnê das prestações ainda tinha 12 parcelas em aberto. Desempregada e sem dinheiro para pagar aluguel, ela estava morando com uma vizinha.

Sentada no chão da nova casa, Cristiana ainda não tem nenhum móvel para colocar, mas anima-se ao ver os vizinhos ajudando a pregar as janelas e porta de madeira. "Tendo a casa, o resto a gente dá um jeito."