Título: Governo Putin ameaça a Rússia e Ocidente
Autor: Wolf, Martin
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2008, Opinião, p. A11

Pelo menos ele fez os trens chegarem no horário. Isso foi dito a respeito de Benito Mussolini, ditador fascista da Itália de 1922 a 1943. Boa parte da mesma observação está sendo feita a respeito de Vladimir Putin, o presidente autoritário da Rússia. Ele pode ter esmagado os frágeis brotos da democracia, mas ao menos restaurou a economia, o Estado e o lugar do seu país no mundo.

Essa opinião é compartilhada pelo próprio Putin. Ele declarou na semana passada: "Nós nos empenhamos em restaurar o país após o caos, a ruína econômica e o colapso do sistema antigo que presenciamos na década de 1990". Mas ela tem um inconveniente: é falsa, segundo Michael Mcfaul e Kathryn Stoner-Weiss, da Universidade Stanford, num artigo poderoso ("The myth of the authoritarian model", Foreign Affairs, janeiro/fevereiro 2008).

É verdade. Entre 1999, ano anterior a Putin se tornar presidente, e 2007, a economia se expandiu 69%. As economias de 11 das 15 ex-repúblicas da União Soviética se expandiram mais do que a Rússia. De fato, só o Quirguistão teve desempenho acentuadamente pior. Várias ex-repúblicas soviéticas se beneficiaram, é verdade, de uma bonança de petróleo e gás, mas o mesmo também ocorreu com a Rússia: suas exportações de petróleo e gás deram um salto, aumentando de US$ 76 bilhões em 1999 para US$ 350 bilhões no ano passado. Mesmo assim, a economia russa se expandiu menos do que o da Ucrânia.

A exemplo de todos os países pós-comunistas, a economia da Rússia sofreu um pronunciado declínio inicial, que atingiu o seu ponto mais baixo em 1998. Países que promoveram reformas de forma mais contundente, como a Polônia, tocaram o fundo mais rapidamente e agora estão bem mais à frente. Mais uma vez, a recuperação da Rússia não é de forma alguma excepcional: a diminuta Estônia se saiu muito melhor. Talvez isso explique porque o Kremlin odeia tanto o Estado báltico.

É equivocado atribuir crédito a Putin pela melhoria. Ela não só começou com a desvalorização de 1998, como praticamente todas as reformas que dão sustentação a ela foram iniciadas, se não materializadas, pelo menosprezado governo de Boris Yeltsin. Sob Putin, pouco progresso foi obtido em reformas estruturais. Este é um dos pontos centrais apresentados por Anders Aslund, um renomado estudioso, num requintado livro novo ("Russia's capitalist revolution", Peterson Institute for International Economics, 2007).

Em aspectos importantes, a reforma econômica andou para trás, particularmente com o sempre crescente papel do Estado em segmentos vitais da economia. Essa inversão está diretamente relacionada com a segunda falsa alegação sobre Putin, de que ele restaurou o Estado. Ela só será válida se aceitarmos a sua definição de Estado forte: um paquiderme que não está sujeito à lei ou à concorrência política.

Putin eliminou toda a independência da televisão e a maioria dela na imprensa, destruiu a autonomia dos governos regionais, castrou o Parlamento e eliminou a competição pelo poder. A divergência política entre Ucrânia, gradualmente mais livre, e a Rússia, cada vez mais despótica, é tão clara quanto preocupante.

O resultado não é um Estado eficaz, mas um Estado excessivamente arrogante. A corrupção corre solta. O próprio Putin nos diz isso: "O sistema do Estado é sobrecarregado pela corrupção e a burocracia e não tem a motivação para mudança positiva, menos ainda para o desenvolvimento dinâmico". Isso é inevitável quando tanto poder não transparente está concentrado nas mãos de uma pessoa. Ao destruir instituições independentes, o Estado mutilou a si próprio: é um gigante cego e aleijado.

Em 2006, a Rússia se classificou na medíocre 96ª posição dentre 175 no índice da "facilidade de fazer negócios" do Banco Mundial, sua pior posição na história. Nos indicadores de governança do Banco Mundial para 2006, a eficácia do governo da Rússia foi classificada no 38º percentil a partir do piso. Sua classificação de Estado de Direito estava no 19º percentil, bem atrás do 27º da Ucrânia e 59º da Polônia. Se julgarmos um Estado por sua capacidade de servir às pessoas e de protegê-las dos poderosos, incluindo ele próprio, a Rússia é ineficaz. Que vastos contingentes de russos apreciem um Estado assim não torna a afirmação menos verdadeira, apenas mais deprimente.

Os vizinhos da Rússia - ao menos aqueles nos quais as pessoas podem expressar as suas opiniões - são mais hostis. O Estado KGB não consegue entender que medo e respeito são antíteses, não sinônimos. Putin não fez nenhum segredo sobre seu pesar pelo colapso do império soviético e da sua indignação diante da subseqüente expansão da União Européia e, mais ainda, da Otan. O que parece ausente do seu discurso é por que esses países, tão familiarizados com o beneficente governo russo, deveriam ter entregado os seus futuros a organismos cujos poderes centrais são a Alemanha e os EUA, respectivamente. Porque, igualmente, como observa Edward Lucas do The Economist, os amigos da Rússia são uma "galeria de criminosos" de ditaduras ordinárias (The New Cold War, Bloomsbury, 2008)?

No lugar das esperanças de outrora pelo aparecimento de uma democracia russa pró-Ocidental, temos o protofascismo: nacionalismo opressor, intimidação de países menores, um culto do líder forte, suspeita de inimigos internos e ressentimento contra estrangeiros.

A Rússia, no entanto, é também um Estado munido de armas nucleares e com vastos recursos energéticos. Isso torna o desenvolvimento preocupante, além de deprimente. A Rússia escolheu a política do medo no lugar da promessa de liberdade. Não há dúvida, equívocos cometidos pelo Ocidente ajudaram a causar isso. Concordo com Aslund que o maior erro foi a decisão de se concentrar no tema ridiculamente insignificante da dívida pós-soviética, no fim de 1991 e começo de 1992, em vez de se focalizar no desafio de auxiliar a transição política e econômica.

Mas isso agora é passado.

De qualquer forma, foi decisão de Putin e seus associados desviar a Rússia da aspiração por uma democracia regida por leis rumo a uma autocracia.

Putin é um fracasso, não um sucesso. Mas ele é um fracasso perigoso. O regime que criou é imprevisível: ninguém sabe como poderá funcionar um duunvirado pós-eleição. É pouco provável, porém, que proporcione melhorias sustentadas em prosperidade.

O Ocidente deve mais uma vez formar uma política unida, deve resistir às tentativas de dividir os ocidentais contra si mesmos, deve se garantir contra a dependência excessiva sobre a energia russa e deve tornar caro o preço do revanchismo para a própria Rússia. Mas ele deve também repetir uma verdade poderosa: o Ocidente não é inimigo do povo russo. Pelo contrário, nada seria mais desejável que uma democracia russa vibrante e confiante assumisse o seu lugar no mundo dos valores ocidentais. E, sim, isso deve incluir tornar-se membro da Otan.

Livremo-nos de ilusões. Esta não é uma nova Guerra Fria, especialmente porque a Rússia não oferece nenhuma nova ideologia sedutora. É, porém, uma paz fria. Isto é uma tragédia. É também uma realidade. Com a qual o Ocidente precisa conviver, provavelmente por um longo tempo.