Título: Cartéis: em busca do acordo perfeito
Autor: Gilberto, André Marques
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2008, Legislação, p. E2

A possibilidade de acordo entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e investigados em processos de apuração de cartéis, desde a entrada em vigor da nº Lei 11.482, de 2007, há cerca de seis meses, ainda permanece cercada de muitas dúvidas. Por esta razão, não causa surpresa que até o momento somente dois acordos desta natureza tenham sido assinados e que, em meados de dezembro de 2007, o Cade tenha aparentemente suspendido negociações com outras cinco empresas interessadas.

Três são os principais focos de debate em relação ao assunto. Em primeiro lugar, a Lei nº 11.482 não prevê que o investigado, para firmar acordo com o Cade, deva reconhecer qualquer parcela de culpa em relação à conduta apurada na investigação administrativa. O Cade, por sua vez, já alterou seu regimento interno em setembro de 2007 para determinar que, em casos instaurados a partir de acordos de leniência, o reconhecimento de culpa por parte do interessado em encerrar a investigação é obrigatório.

Para processos que não tenham sido iniciados a partir da leniência, a avaliação pelo Cade quanto à necessidade de confissão para assinatura do acordo ocorrerá caso a caso. A margem de imprevisibilidade neste aspecto da negociação dos acordos é, portanto, enorme; não se pode esquecer, aliás, que ao confessar fica-se à mercê de conseqüências criminais e até mesmo de ações de reparação a serem movidas por quem tenha se sentido prejudicado pela prática confessada.

O valor da contribuição pecuniária a ser recolhida pelo agente com quem o acordo for firmado também é tema de discussão; a Lei nº 11.482 afirma apenas que o valor não será inferior ao da penalidade mínima que poderia ser aplicada em caso de condenação - 1% do faturamento do ano anterior ao início da investigação.

Na prática, entretanto, o Cade tem sido criticado em virtude dos valores acordados com empresas que firmaram acordos em processos relacionados aos setores de cimento e venda de carnes - 10% e 2,25% do faturamento dos signatários de cada um dos acordos, respectivamente. Caso aumentados estes patamares em negociações futuras, entretanto, pode deixar de fazer sentido sob o ponto de vista da racionalidade empresarial firmar o acordo, ao invés de simplesmente deixar o processo seguir seu curso e aguardar uma decisão final - que pode ou não ser no sentido da condenação dos investigados.

-------------------------------------------------------------------------------- É fundamental que as autoridades transmitam os requisitos das negociação para pôr fim a investigações de cartel --------------------------------------------------------------------------------

Há, ainda, a questão da assinatura de acordos para encerrar investigações de cartéis "hard core", em que as autoridades deteriam um grande volume de evidências para comprovar a ocorrência de práticas como fixação de preços e/ou divisão de mercado com concorrentes. Se a Lei nº 11.482 não faz ressalvas à celebração de acordos nestes casos, é ilustrativa a análise do parecer emitido pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) em novembro de 2007 acerca da assinatura de acordo na investigação relativa ao setor de cimento.

Ali, se de um lado é mencionada a importância destes acordos sob o ponto de vista do interesse público e também dos entes investigados, de outro lado, por conta de especificidades relacionadas àquele caso, tais como a realização de buscas e apreensões que resultaram na obtenção de um volume alegadamente significativo de evidências em desfavor dos investigados, constam ao final do documento uma série de recomendações; dentre elas, que a interessada no acordo deveria confessar a realização das práticas investigadas, cooperar com o prosseguimento das investigações em relação aos demais agentes processados e reconhecer a legalidade das operações de busca e apreensão.

É certamente compreensível, reconheça-se, a preocupação da Secretaria de Direito Econômico em não banalizar estes acordos e torná-los um simples mecanismo de "fuga" para agentes envolvidos em investigações de cartéis; ainda assim, o fato é que rigorosamente nenhuma das medidas recomendadas é prevista expressamente na Lei nº 11.482.

Por fim, já tivemos oportunidade de demonstrar preocupação quanto ao impacto que a introdução desta nova espécie de acordo possa gerar no programa de leniência brasileiro, uma vez que pode passar a fazer mais sentido ao empresariado não realizar a "autodenúncia" inerente à celebração da leniência para, posteriormente, buscar a celebração de um acordo com o Cade caso a prática de cartel seja descoberta pelas autoridades.

Não nos parece, entretanto, que seja este o momento para criticar ou elogiar a instituição destes acordos; diante de tantos focos de incerteza. Muito mais importante é registrar que, diante da falta de clareza desejável na redação da nº Lei 11.482, é fundamental que Cade, SDE e todas as demais autoridades envolvidas sejam capazes de transmitir, com clareza, transparência e pragmatismo, quais são os requisitos que serão afinal exigidos na negociação de acordos para pôr fim a investigações de cartéis. Não adotadas medidas básicas para conferir total previsibilidade a tal instituto, é muito duvidoso se ele será incorporado com algum sucesso à nossa cultura de defesa da concorrência.

André Marques Gilberto é advogado da equipe de direito concorrencial do escritório Barcellos e Tucunduva Advogados

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