Título: Cartão de crédito terá legislação específica
Autor: Basile, Juliano, Ribeiro, Alex ; Rodrigues, Azelma
Fonte: Valor Econômico, 13/02/2008, Finanças, p. C3

O aumento das reclamações de consumidores contra as empresas de cartão de crédito, em um momento em que esse produto financeiro se dissemina entre as classes C e D, levou o governo a discutir uma legislação específica para o setor.

Pelo menos dois pontos chamam a atenção dos órgãos de defesa do consumidor. Um é o grade número de consumidores que procuram os Procons em todo o país para calcular o valor das parcelas devidas. A avaliação é que as empresas de cartões de crédito, de forma geral, não estão fazendo o devido atendimento aos consumidores, o que acaba sobrecarregando os órgãos públicos. A solução para o problema ainda está sendo estudada, mas tendência é que seja adotada uma solução semelhante à imposta aos bancos, que foram obrigados pelo Conselho Monetário nacional (CMN) a criar serviços de ouvidoria para informar corretamente e resolver conflitos criados com os consumidores.

Outro ponto que chama a atenção são as dificuldades enfrentadas pelos consumidores para cancelar cartões de crédito. Para o DPDC, o direito de cancelar cartões é fundamental para que o consumidor faça suas escolhas e para que haja competição. No passado recente, houve problema semelhante no encerramento de contas bancárias. Nesse caso, foi usado o princípio da auto-regulação. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) criou um procedimento padrão para o encerramento de contas correntes, que prevê, por exemplo, que o cliente possa solicitá-la em qualquer agência do banco, e não necessariamente naquela em que abriu a conta bancária.

Dados coletados pelos órgãos de defesa do consumidor mostram que, em 2007, a indústria de cartões de crédito e débito se tornou campeã em número de reclamações, desbancando a telefonia, o setor tradicionalmente líder em queixas de consumidores. Hoje, os cartões representam 15% da demanda total dos Procons.

O diagnóstico do governo é que, ao contrário do que tem se afirmado, não existe vácuo regulatório na indústria de cartões de crédito. O segmento, como a maior parte das atividades econômicas, está sujeito ao Código de Defesa do Consumidor, que prevê a reparação de danos patrimoniais e individuais provocados por empresas a seus clientes. Adicionalmente, o segmento é submetido à vigilância do Banco Central, quando o cartão de crédito é emitido por instituição financeira. A recorrência e a gravidade das reclamações, porém, poderão levar a edição de uma regra específica para o setor, a exemplo do que foi feito com tarifas bancárias, que também devem observar o Código do Consumidor, mas ganharam normativos próprios para evitar abusos.

"Não existe um limbo para os cartões de crédito", afirma Ricardo Morishita, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça. Segundo ele, as empresas de cartões estão sujeitas ao Código, como todos os setores da economia. "Mas, faltam medidas estruturais para evitar abusos neste setor", completa.

O governo atua no setor de cartões de pagamento em duas frentes. Primeiro, por meio de um convênio firmado em 2006 pelo BC, pela Secretaria de Direito Econômico (SDE) do Ministério da Justiça (a qual o DPDC está vinculado) e pela Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae) do Ministério da Fazenda. O objetivo é verificar se há alguma falha de mercado na indústria de cartões, como o exercício de poder de mercado por meio da imposição de preços mais elevados tanto aos consumidores, quanto aos lojistas que aceitam os cartões.

Outra frente de trabalho é um convênio assinado pelo DPDC e o BC, com foco nas relações de consumo. Por esse entendimento, ficou definido que sempre que houver um número significativo de reclamações a um determinado serviço financeiro, o BC será acionado para fazer uma fiscalização mais intensiva na área.

Os dados reunidos pelo DPDC mostram, no caso dos cartões, aumento vertiginoso nas reclamações. Em 2006, os orgãos de defesa do consumidor de todo o país haviam recebido 35 mil consultas relativas a cartões, o que colocava o setor atrás da telefonia fixa (36 mil registros) em número de ocorrências. Em 2007, as consultas relativas a cartões de crédito subiram a 52 mil, superando a telefonia fixa, que registrou 47 mil ocorrências.

No início deste ano, as reclamações contra cartões de crédito ultrapassaram as queixas contra os bancos. Entre 1º de janeiro e 8 de fevereiro de 2008, os Procons receberam 6.064 demandas envolvendo cartões e 3.907 reclamações contra bancos.

A principal reclamação é sobre a cobrança indevida de valores na fatura. A segunda questão que mais movimenta os órgãos de defesa do consumidor é a rescisão de contratos, ou seja, o cancelamento dos cartões. O terceiro e o quarto assunto mais demandado nos Procons são respectivamente o cálculo das taxas de juros incidentes nas prestações e o cálculo das prestações em atraso.

A forte alta no número de consultas é atribuída, na leitura do DPDC, à recente difusão dos cartões de crédito entre o segmento de renda mais baixa da população. Uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que a parcela da população que mais demanda os Procons são exatamente as classes C e D. "Universalizar um serviço sem qualidade não representa avanço algum", afirma Morishita. "Não é importante apenas o acesso da população aos serviços bancários, é importante também que haja qualidade nos serviços."

O BC, a SDE e a Seae estão fazendo um amplo diagnóstico do setor de cartões, que inclui não apenas os consumidores finais e de emissões de cartões, mas também a rede de captura de transações (empresas que instalam e mantêm as redes de máquinas instaladas no comércio) e os comerciantes. Há cobrança de tarifas em duas pontas do negócio. O portador do cartão paga anuidade à empresa emissora, além de juros nos financiamentos contratados. Os comerciantes pagam tarifa às empresas de cartão em cada transação efetuada.

As tarifas, que em alguns casos chegam a 3,5% do valor das transações feitas com cartão, são questionadas por associações comerciais. Existem inclusive projetos no Congresso Nacional que procuram permitir que os comerciantes cobrem valores mais elevados dos consumidores nos casos de vendas por cartão.

Com a investigação sobre a estrutura e a competição no mercado de cartões, o governo segue a experiência recente de países como a Holanda, Reino Unido, Espanha, México e Chile, nos quais os bancos centrais e os órgãos de defesa da concorrência também uniram esforços. No Reino Unido, a conclusão das investigações foi de que a indústria de cartões exercia poder de mercado na administração da rede de captura de transações. A solução foi negociada com as empresas do setor. Na Austrália, onde havia um problema semelhante, a solução foi intervir nas tarifas cobradas.