Título: Racionalização ou racionamento?
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 30/01/2008, Opinião, p. A10

Janeiro de 2008 e o Brasil se vê ameaçado por um novo apagão de energia. A indústria reclama, a mídia se mobiliza, pipocam artigos de opinião, o preço da energia aumenta e o governo procura argumentos e desculpas para negar os fatos. Declarações oficiais se desencontram. O clima é de início de crise. E a sociedade se pergunta: como isso pôde acontecer de novo?

Nos sete anos passados desde o apagão, o governo ignorou uma das soluções mais práticas e acessíveis para garantir a segurança do país: a racionalização do uso da energia, através de ações, políticas e campanhas de eficiência energética. Pelo contrário, o governo federal insistiu em investimentos bilionários em obras de grande porte e pela ampliação da geração elétrica a partir de combustíveis fósseis. E apesar dos problemas, o governo parece não ter mudado de idéia, conforme detalha o Plano Nacional de Energia 2007-2016. As estimativas do Plano subestimam o potencial de conservação e eficiência energética e o aumento da participação de fontes renováveis na matriz nacional para a próxima década.

A situação atual não é tão grave quanto em 2001, já que o nível dos reservatórios está mais alto e a malha de transmissão foi ampliada, o que permite a transferência de energia entre regiões. Porém, com as poucas chuvas deste início de ano, o Operador Nacional do Sistema mandou acionar as usinas térmicas para garantir a estabilidade do suprimento de energia. Estas usinas térmicas dependem de gás natural, combustível fóssil cujo fornecimento torna-se mais caro e instável a cada dia. Ainda que exista oferta de gás para fazer face ao atual período de estiagem, não há combustível suficiente para atender às térmicas, à indústria e ao abastecimento de automóveis simultaneamente. O direcionamento do gás natural para a geração elétrica fatalmente implicará cortes em outros setores. A possibilidade de um racionamento de gás expõe, outra vez, a falta de coordenação do governo, que apostou na expansão das térmicas para enfrentar eventuais déficits de energia e, ao mesmo tempo, continuou a ampliar o uso industrial e automotivo do gás.

Neste momento de aperto, as térmicas a gás funcionam como um paliativo que ajuda a ganhar tempo. Porém, estão longe de garantir a segurança energética que o país precisa para se desenvolver. O Brasil, que sempre se gabou de sua matriz limpa movida a hidreletricidade, acelera na contramão da história sujando o parque elétrico nacional com investimentos em novas térmicas a gás e carvão mineral. Em tempos de aquecimento global, a grande discussão é justamente como reduzir as emissões de gases do efeito estufa e o país perde a oportunidade de liderar uma verdadeira revolução energética, dada a abundância de energias renováveis no país. Esta oportunidade se reforça ainda mais na medida em que o alto preço de despacho das térmicas torna viável grande parte dos empreendimentos em fontes alternativas de energia, considerados caros em outros momentos.

Até agora, o Brasil não criou condições adequadas para o desenvolvimento de um mercado de energias renováveis. O Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa), lançado pelo governo federal em 2002, enfrentou muitos problemas em sua implantação. Houve falhas na definição de regras claras para o funcionamento do programa, dificuldades para obter financiamento e barreiras no acesso de empreendedores ao crédito. Os investidores discordaram do governo quanto ao valor econômico dos projetos e não se empolgaram com o programa. Mais grave, não há indicação de que o Proinfa terá continuidade após o encerramento de sua primeira etapa no fim deste ano.

-------------------------------------------------------------------------------- A situação atual não é tão grave quanto em 2001, o nível dos reservatórios está mais alto e a malha de transmissão foi ampliada --------------------------------------------------------------------------------

A experiência bem sucedida de mais de quarenta países mostra que o desenvolvimento do mercado de energias renováveis só acontecerá quando os produtores tiverem garantias de acesso à rede e trabalharem com contratos de longo prazo e tarifas especiais. É a aplicação da chamada tarifa feed in, que concede melhor retorno do investimento tanto para compradores como para vendedores de energia.

A sociedade civil, inclusive o Greenpeace, já produziu e publicou cenários alternativos para a matriz elétrica brasileira, baseados nos enormes potenciais de geração eólica (143 GW, de acordo com o Atlas Eólico Nacional), biomassa (27 GW de cogeração em 2020, de acordo com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar) e de pequenas centrais hidrelétricas (17 GW, de acordo com a Empresa de Planejamento Energético), além da ênfase em medidas de eficiência energética (com potencial de reduzir o consumo de energia em até 29% em 2050, de acordo com o cenário do Greenpeace). Estes cenários alternativos foram friamente ignorados pela Empresa de Planejamento Energético (EPE), do Ministério de Minas e Energia.

Não surpreende, já que a EPE também é capaz de ignorar os bons exemplos do próprio governo federal, como o Procel (Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica). Com um investimento de R$ 850 milhões, ou 12% dos R$ 7 bilhões estimados para construir a usina nuclear Angra 3, o Procel economizou 5.124 MW, o equivalente a quatro vezes a capacidade de geração de Angra 3, que é de 1.350 MW.

Hoje, a racionalização pode até ser uma interrogação com relação à energia, mas está certamente em falta para quem elabora o planejamento energético do país. Apesar de algumas leis e programas terem sido criados, não foram implementados corretamente. Está claro que se os investimentos em uso racional da energia, com medidas de renovação do parque industrial e campanhas junto aos consumidores finais, e investimentos sérios em renováveis tivessem sido feitos, não viveríamos à sombra do racionamento.

As crises também podem criar o ambiente necessário para grandes mudanças. O Brasil deve aproveitar esse momento para investir em soluções duradouras que evitem novas crises como esta no futuro. Infelizmente, o governo federal parece preferir se manter refém dos próprios erros, como revelam declarações recentes do Ministério de Minas e Energia e da EPE, desprezando a necessidade de economia de energia e culpando ambientalistas pela iminência do apagão. Tudo indica que quem vai acabar pagando o pato - com o aumento dos preços da energia, e engolindo o sapo - com medidas de racionamento é, mais uma vez, a sociedade brasileira.

Beatriz Carvalho G. Santos, advogada, é mestre pela Universidade de Nova York e coordenadora da campanha antinuclear do Greenpeace.

Rebeca Lerer é jornalista e coordenadora da campanha de energia do Greenpeace.

Ricardo Baitelo é engenheiro, mestre em eficiência energética pela POLI-USP, doutorando em planejamento integrado de recursos energéticos também pela POLI e coordenador da campanha de energias renováveis do Greenpeace.