Título: Em estado de alerta, ONS decide elevar repasse de energia do Sul para Sudeste
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 09/01/2008, Brasil, p. A2

Mario Veiga, da PSR Consultoria: "Sistema não resiste a secas severas" Em estado de alerta, por causa da estiagem prolongada que tem afetado os reservatórios do país, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) decidiu aumentar a transferência de energia do Sul para o Sudeste e Centro-Oeste. Ontem e segunda-feira, as usinas do Sul começaram o repasse e mandaram pouco mais de 600 megawatts (MW) para o subsistema Sudeste/Centro-Oeste.

O Valor apurou que a transferência subirá para cerca de 1.000 MW médios a partir de hoje. Trata-se de medida emergencial para evitar que os reservatórios nas duas regiões, atualmente em 44,8% da capacidade máxima, continuem a cair. O nível das represas é o mais baixo para janeiro desde 2004 - pleno período de chuvas. Na primeira semana do mês, choveu apenas 46% da média das últimas sete décadas.

A medida só é possível porque a situação está mais tranqüila no Sul, onde o armazenamento de água nos reservatórios chega a 74% da capacidade total. No Sudeste/Centro-Oeste, eles estão a apenas cinco pontos percentuais do nível mínimo de segurança para o período. O governo tem adotado cautela na análise da situação. Espera o aumento das chuvas a partir da segunda quinzena de janeiro e diz que isso pode reverter o quadro de alerta. Garante que não trabalha com a hipótese de racionamento em 2008, mas o cenário desperta preocupação e a cúpula do setor elétrico foi chamada para uma reunião amanhã, no Ministério de Minas e Energia.

O diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Jerson Kelman, sugeriu ontem a elaboração de um plano de contingência para o setor. Ele advertiu que "não é impossível" um racionamento já em 2008 e conclamou o governo a não repetir a situação de 2001, quando foi pego de surpreso e teve que desenhar um plano às pressas. "Você só discute temas como apólice de vida e sepultura quando está bem de saúde. Da mesma forma deve ser com coisas desagradáveis, como o racionamento", disse o diretor da Aneel. "Esse assunto deve ser discutido muito antes; não sob pressão", ressaltou.

Kelman evitou falar em tom dramático sobre o esvaziamento dos reservatórios, em meio à falta de chuvas que castiga o país, com exceção da região Sul. "Não estou dizendo que vai ter problema. Não é impossível haver um racionamento este ano, mas o mais provável é que não tenha", disse.

Para ele, é importante ter com antecedência as regras do jogo em uma eventual necessidade de cortar energia. Ele também destacou a necessidade de resgatar campanhas de racionalização e eficiência no consumo de eletricidade. Por exemplo, estimulando o uso de lâmpadas fluorescentes. Assim como já haviam feito outras autoridades do setor, Kelman desaconselhou a conversão de motores para o uso de gás natural como combustível. Segundo ele, os motoristas devem "parar com essa bobagem". "As pessoas não estão percebendo que acabam dando um tiro no pé", afirmou Kelman.

A transferência da energia gerada no Sul visa também compensar, pelo menos em parte, o repasse de eletricidade das usinas do Sudeste/Centro-Oeste ao Nordeste. Com apenas 27% da capacidade máxima, os reservatórios nordestinos são os que mais preocupam. Os Estados da região já têm recebido energia do Sudeste e Centro-Oeste.

O diretor comercial da União Energia, Felipe Barroso, vê o cenário com preocupação e acredita que o valor do megawatt-hora (MWh) pode ultrapassar R$ 500 na próxima semana, no mercado atacadista. Ele aposta, entretanto, em reversão dos preços a partir da segunda quinzena de janeiro, com a chegada das chuvas mais fortes. "O mercado está em compasso de espera", afirma. Segundo ele, algumas indústrias eletrointensivas começam a trabalhar com redução do consumo e atraso da produção, aguardando a queda no preço "spot" da energia. "Mas ainda não estamos vendo um movimento de desligamento da produção para venda total da energia contratada no mercado atacadista", acrescenta o executivo, lembrando episódios do racionamento de 2001, quando tornou-se mais lucrativo vender a eletricidade do que apostar na produção. Na época, o preço do MWh no "spot" alcançou R$ 684. Hoje, está em R$ 475.

Para o presidente da PSR Consultoria, Mário Veiga, o foco atual no nível dos reservatórios mostra que há desequilíbrio entre oferta e demanda de energia. Veiga relembra o cenário desenhado há quatro anos para a operação do sistema elétrico e afirma que ele não se cumpriu.

Esperava-se, na ocasião, oferta em torno de 57 mil MW médios e 54,5 mil MW médios de demanda. As previsões não se concretizaram. Apesar da instalação de novas turbinas em Itaipu e de Tucuruí, a quantidade de gás natural retirada do sistema transformou radicalmente o cenário. O que se tem hoje é oferta de 51 mil MW médios e demanda de 53,5 mil MW médios.

"Perdemos aproximadamente 6 mil megawatts", afirma Veiga, responsabilizando a escassez de gás natural pela perda. Segundo ele, o que ocorreu foi um conjunto de três problemas. Na Argentina, a falta de gás impede a exportação de 2 mil MW ao Brasil e o envio de insumo para produzir 300 MW na termelétrica de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. No Brasil, a Petrobras reconheceu não ter gás suficiente e deixará de enviar combustível suficiente para 3,5 mil MW ao longo de 2008. Na Bolívia, Evo Morales admitiu que não terá insumo para abastecer a Termocuiabá, no Mato Grosso.

Tudo isso, segundo o consultor, faz com que o país torne-se mais vulnerável ao regime de chuvas. Para atender à demanda, as hidrelétricas precisam usar mais potência e exigem maior consumo de água. O desequilíbrio atual entre oferta e demanda, explica Veiga, "não significa que vai haver racionamento, mas que o sistema já não resiste a secas severas e os reservatórios podem cair rapidamente".