Título: O fantasma da iliquidez que ronda a Europa do euro
Autor: Assis, Carlos de
Fonte: Valor Econômico, 29/01/2008, Opinião, p. A18

Política monetária e política fiscal devem estar funcionalmente ligadas na economia contemporânea. É a única forma pela qual a política fiscal-monetária pode ter um papel anticíclico. Sua desvinculação, como no Brasil, neste caso reforçada por disposição constitucional, faz com que a política monetária funcione exclusivamente no sentido da recessão, tornando-a virtualmente ineficaz para empurrar a economia no rumo do crescimento e do pleno emprego, nos momentos de crise. É a velha metáfora do barbante: serve para puxar a pedra, não para empurrá-la. Breve veremos as conseqüências desse enunciado no mercado bancário europeu.

Como mencionei em outro artigo, a disposição do Banco Central Europeu de emprestar até US$ 500 bilhões aos bancos filiados para enfrentar a crise de liquidez iniciada no mercado suprime norte-americano terá pouca eficácia. Na Grande Depressão dos anos 30 nos Estados Unidos, a existência de uma sobra de liquidez em grande parte do mercado bancário não impediu que cerca de nove mil pequenos e médios bancos ilíquidos naufragassem em poucos anos.

O estado da liquidez bancária é indicado por uma média: os que estão acima da média devem, em tese, emprestar para os que estão abaixo. Estes pagam as taxas do interbancário para obter empréstimos dos primeiros. Acontece que, em situações de crise, os bancos líquidos preferem emprestar ao próprio banco central, mesmo a taxas menores (mediante reservas remuneradas), do que emprestar aos bancos ilíquidos, que lhes parecem suspeitos. Assim, resta a estes últimos recorrer a empréstimos de liquidez do próprio banco central. Para isso, devem oferecer garantias.

A melhor garantia são títulos públicos. Contudo, na zona do euro, a disponibilidade de títulos públicos é limitada, inclusive pela regra de Maastricht que estabelece um teto de déficit anual de 3% do PIB. Esta é a fonte de títulos públicos novos no mercado, anualmente, talvez insuficiente para a simples rolagem do antigo estoque da dívida pública mobiliária. Diante disso, os bancos terão de oferecer títulos privados de sua carteira, não os de sua própria emissão, expondo-se a uma avaliação de qualidade que, em última instância, em situações de crise, pode levar à intervenção ou quebra.

Compare-se essa situação com uma política fiscal-monetária de tipo keynesiano, como a adotada comumente nos Estados Unidos: a crise bancária é entendida como expressão de uma crise na economia real, afetada por queda de demanda e alto desemprego. Diante disso, é importante que o banco central reduza a taxa de juros e expanda a liquidez, mas isso é apenas parte da solução. A solução completa implica uma política fiscal ativa, pela qual o Tesouro toma emprestado dinheiro dos bancos líquidos para convertê-lo em dispêndio público deficitário.

Com a ativação da demanda pelo dispêndio público "autônomo", os gastos governamentais se convertem em depósitos nos bancos. As reservas bancárias aumentam em todo o sistema, inclusive para os bancos anteriormente ilíquidos. Isso lhes dá fôlego para administrar suas carteiras e livrar-se dos créditos podres. Alguns pequenos e médios quebrarão de qualquer forma, pelo reflexo da crise anterior, mas a amplitude do desastre é muito menor em comparação com uma situação na qual o sistema fiscal e o sistema monetário se relacionam entre si como duas mônadas.

Se isso é tão simples assim, já que é amplamente conhecido pelos teóricos e os especialistas, como entender que um bando de tecnocratas louros, de olhos azuis, todos pertencentes à fronteira da civilização, tenham desenhado na Europa uma estrutura fiscal-monetária tão ineficaz para lidar com as crises bancárias? Já me perguntei isso várias vezes, e não tenho uma resposta definitiva. Grande parte dessa tontería se deve à ideologia: Hayek pretendia que a emissão de moeda passasse à competência exclusiva dos bancos privados. Era um exagero, que assustou o próprio Milton Friedmann. Mas o BCE está muito próximo disso.

-------------------------------------------------------------------------------- Em situações de crise, os bancos líquidos preferem emprestar ao próprio banco central do que emprestar aos bancos ilíquidos --------------------------------------------------------------------------------

A questão de compatibilizar, na União Européia, vários sistemas fiscais nacionais com um sistema monetário único não foi nada simples. Os Estados Unidos criaram um banco central regionalmente integrado, operacionalmente independente, mas politicamente responsável perante o governo federal. Tesouro e Fed atuam coordenadamente na gestão da política fiscal-monetária. O Fed não compra diretamente títulos do Tesouro, mas, quando há déficit público, cria, pela redução da taxa de juros e ampliação da liquidez, ambiente favorável para que os bancos privados filiados os comprem a taxas razoáveis.

No sistema do euro, não só o BCE não compra diretamente títulos públicos, como também a política fiscal está estruturalmente enquadrada pelas regras restritivas e rígidas de Maastricht. É como se o Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, não pudesse emitir títulos públicos além de uma determinada quota, independentemente de sua situação fiscal. Ou, mais estranho ainda, é como se todos os Estados Unidos não pudessem ter déficit superior a 3% do PIB - algo que, na situação atual, levaria provavelmente o mundo inteiro a uma débâcle, por estreitamento da liquidez global.

O sistema do euro tirou da Europa qualquer capacidade de contribuir como locomotiva do mundo, a despeito da atual crise. Fala-se da substituição do dólar pelo euro como moeda reserva, o que já está acontecendo em parte. A meu ver, continuará em parte, pois a oferta de liquidez e de títulos públicos europeus é limitada. Gostemos ou não, este mundo ainda gira com uma relativa tranqüilidade, a despeito das crises cíclicas, porque os Estados Unidos têm um gigantesco déficit fiscal e outro gigantesco déficit comercial: um dá liquidez ao mundo, outro compra os produtos e serviços do mundo. Só um louco pode pensar em bloquear isso de uma hora para a outra.

E nós? O fetiche das "finanças saudáveis" fez de nosso sistema fiscal-monetário um híbrido esquizofrênico, na medida em que o déficit nominal, sendo de origem exclusivamente financeira, pode, mas não garante contrabalançar o efeito contracionista do superávit primário. O Banco Central, pela extravagante taxa básica de juros, e o Tesouro, pelo superávit primário, atuam juntos no sentido contracionista, sendo que a única fonte de respiro da economia é a eventual conversão do déficit nominal que ainda resiste, ou mesmo de parte do estoque da dívida mobiliária, em recursos de investimento e de consumo - isso se o Banco Central não achar que deve restringir a liquidez, ou se o ministro Mantega não decidir que deve perseguir a sugestão do ex-deputado Delfim Netto de zerar o déficit nominal.

Como diante de uma taxa básica de juros tão alta, que remunera grande parte dos títulos públicos, alguém se dispõe a converter sua "moeda financeira" em moeda de financiamento do investimento e de consumo, como parece ter acontecido em 2007, ano de notável crescimento? Simples, porque, a despeito do desemprego e da queda histórica da renda do trabalho, a própria repressão do crescimento durante vários anos e uma sábia decisão de ampliar o crédito de consumo criaram bolsões de oportunidades de investimento onde a massa dos lucros em perspectiva compensa abrir mão da taxa de juros da "moeda financeira", sobretudo quando se trata de mobilização a "moeda financeira" para complementar inversões reais financiadas na maior parte por fluxo de caixa interno.

Claro, é difícil saber até que ponto esse surto de crescimento é sustentável. É bom lembrar que crédito é função de renda, sendo que a renda real acumulada comprometida com compra a prazo é inversamente proporcional à taxa de juros. Em outras palavras, para ciclos longos, a demanda efetiva sustentada por crédito pode cair ou estagnar-se, em razão de uma estrutura de taxa de juros de aplicação muito elevada. Se isso vier a acontecer, o investimento cai e o déficit nominal volta a ser o que tem sido nas duas últimas décadas: uma fonte de conversão de tributos pagos por todos, inclusive pelos pobres, em reaplicações nos títulos da dívida pública detidos pelos ricos, sem qualquer efeito na demanda efetiva.

Antigamente, gostávamos muito de imitar os americanos, inclusive quando instituímos um banco central "desenvolvimentista", mas, agora, adoramos a genialidade ortodoxa européia. Pelo exposto, tornamos nosso Banco Central também uma mônoda. Achamos natural que seu presidente, diante da queda da CPMF, ameace abertamente com novo aumento da taxa básica de juros se o governo relaxar na política fiscal. Trocando em miúdos, se reduzir o superávit primário. Todos sabem que isso seria o aborto do crescimento esboçado em 2007. É estranho. Votei num sujeito para presidente, e é um banqueiro privado sem responsabilidade política quem dita as regras básicas da política monetária e fiscal, independentemente da situação da economia real e do emprego.

José Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero.