Título: Ativos nos EUA precisam cair
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Fonte: Valor Econômico, 10/01/2008, Opinião, p. A10

Os EUA têm sido o principal culpado pelos desestabilizadores desequilíbrios mundiais dos últimos anos. O enorme déficit americano em conta corrente absorve cerca de 75% do superávit mundial de poupança. A maioria dos analistas acredita que um dólar mais fraco é a melhor cura para esses desequilíbrios. Mas o dólar americano perdeu, em termos reais, 23% de seu valor desde fevereiro de 2002, produzindo um impacto apenas mínimo sobre o enorme e crescente desequilíbrio americano com o exterior. Os que acreditam na desvalorização do dólar argumentam serem necessárias depreciações ainda maiores da moeda. Protecionistas insistem em que a China - que acumula o maior desequilíbrio comercial bilateral com os EUA - deveria arcar com uma parcela mais que proporcional da próxima dose de depreciação do dólar americano.

Há uma boa razão para duvidar dessa opinião. O déficit americano em conta corrente deve-se mais a bolhas em preços de ativos do que um desalinhamento do dólar. Uma solução exigirá uma correção nos preços dos ativos, mais do que uma desvalorização adicional do dólar. No cerne do problema está uma das mais insidiosas características de uma economia dependente de ativos - um déficit crônico de poupança interna. Com uma poupança nacional americana líquida média de apenas 1,4% da renda nacional durante os últimos cinco anos, os EUA tiveram de importar superávit de poupança do exterior para continuar crescendo. Isso significa que os EUA necessariamente incorrem em enormes déficits em conta corrente e na balança comercial ao atrair capital estrangeiro.

A aversão americana a poupar não surgiu do nada. Ondas de valorização de ativos - primeiro nas bolsas e, mais recentemente, no mercado imobiliário residencial - convenceram os cidadãos do início de uma nova era. Reforçado por uma enorme bolha de crédito barato, o comportamento resultante decorreu da escassa necessidade percebida de poupar à moda antiga: poupança baseada em renda. Ativos tornaram-se o instrumento predileto.

Uma bolha estimulou a seguinte, e os desequilíbrios americanos alcançaram proporções épicas. Apesar de uma geração de renda de modo geral abaixo do usual, em 2007 o consumo privado disparou para um recorde de 72% do Produto Interno Bruto (PIB) real. O endividamento familiar atingiu um recorde de 133% da renda pessoal disponível. E o montante de poupança pessoal baseada na renda recuou para território negativo em fins de 2007.

Nenhuma dessas tendências é sustentável. É apenas uma questão de quanto tempo será necessário para que elas sejam descontinuadas e do que será necessário para desencadear um reequilíbrio já bastante atrasado. Forte queda nos preços dos ativos é necessária para reequilibrar a economia americana. Trata-se da única esperança realista de mudança no caráter do mix de poupança, deixando de basear-se em valorização de ativos para passar a a apoiar-se em geração de renda. Isso poderá implicar um declínio de até 20% a 30% nos preços de imóveis no mercado habitacional americano e em uma interrelacionada deflação da bolha de crédito barato e fácil.

Essas tendências parecem já estar em andamento. Refletindo um exagerado desequilíbrio entre oferta e demanda por novas residências, os preços de propriedades residenciais caíram 6% no período de doze meses findo em outubro de 2007 em 20 importantes regiões metropolitanas americanas, de acordo com o Índice Case-Shiller, da S&P. Muito provavelmente, isso prenuncia, para 2008, um declínio mais amplo nos preços de moradias em nível nacional, que poderá persistir em 2009. De outra parte, devido à crise no mercado habitacional de segunda linha, houve um estouro da bolha de crédito, pondo fim ao financiamento barato, combustível que alimentou bolha no mercado habitacional.

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À medida que os preços das moradias forem entrando num período declinante acentuado, os consumidores finalmente irão se dar conta dos perigos de estratégias de poupança distorcidas por bolhas. Famílias em dificuldades financeiras reagirão, reequilibrando suas poupanças então em sintonia com suas rendas. Isso significa que a participação do consumo no PIB cairá - e a economia americana muito provavelmente tombará em recessão.

A retomada de uma poupança americana baseada em renda será um fenômeno com conseqüências cruciais para o resto do mundo. À medida que o consumo declinar, e que a poupança das famílias crescer nos EUA, a necessidade de importar superávits de poupança do exterior diminuirá. A demanda por capital estrangeiro recuará, resultando em redução dos déficits americanos em conta corrente e comercial. A economia mundial sairá machucada, porém bem mais equilibrada.

As autoridades econômicas e os políticos em Washington precisam se abster de intervir e deixar que esse ajuste se efetive. Mas a reação do establishment político americano está sendo de pânico - promovendo enormes injeções de liqüidez que produzem outra bolha de ativos e propondo estímulos fiscais que deprimirão ainda mais a poupança interna. Essas iniciativas só podem agravar os próprios problemas que colocaram os EUA nessa encrenca.

Os congressistas americanos que criticam sistematicamente a China também precisam moderar seu tom. Os chineses não são um problema para os americanos - a China tem um déficit comercial multilateral com mais de 40 países. O desequilíbrio bilateral com a China pode ser o maior contribuinte para o desequilíbrio comercial total americano, mas, em larga medida, ele é resultado de decisões em nível de cadeia de suprimentos de multinacionais americanas.

Se, erroneamente, centrar seu foco no dólar e em pressões sobre a moeda chinesa, o Congresso apenas deslocará o componente chinês do déficit comercial americano para outro lugar - muito provavelmente para um produtor operante a custos mais elevados. Isso equivaleria a um aumento de impostos sobre o trabalhador americano. Se os EUA voltarem a praticar um acúmulo de poupança baseado em renda, na esteira do estouro das bolhas nos mercados habitacional e de crédito virá um estreitamento do déficit comercial multilateral - e o desequilíbrio bilateral com a China encolherá.

Romper o vício de um comportamento a reboque de ativos será um processo extremamente doloroso. Ninguém deseja recessões, deflação de ativos e crescente desemprego. Mas esse sempre foi um possível fim de jogo para uma economia americana com tendência para bolhas. Quanto mais os EUA adiarem esse acerto de contas, maior será o preço final a pagar pelo ajuste. Por dura que seja, essa é a única maneira sensata de permitir que os próprios mercados saneeiem o cenário. É esse, fundamentalmente, o significado do já atrasado estouro das bolhas americanas nos mercados de ativos e de crédito.

Stephen Roach é presidente do Morgan Stanley Ásia.