Título: BC fala em rigor, mas mercado vê lentidão em normas
Autor: Bautzer, Tatiana
Fonte: Valor Econômico, 29/01/2008, Finanças, p. C6

Adrian Moser / Bloomberg News O presidente do BC, Henrique Meirelles, defendeu regulação mais dura em Davos, mas isso não ocorreu no Brasil Ofuscadas pela prioridade dada nos últimos anos à política monetária, as áreas de fiscalização e normas do Banco Central mudaram expressivamente sua atuação durante a gestão de Henrique Meirelles. Muitos analistas que acompanham o BC há anos acreditam em enfraquecimento. No Fórum Econômico Mundial em Davos, o presidente do BC defendeu o endurecimento da regulação, especificamente na área de securitização de crédito. A falta de regulação e fiscalização sobre a concessões de empréstimos é uma das razões apontadas para o colapso do mercado de hipotecas subprime nos Estados Unidos, assim como o fracasso das agências de rating em estimar o real risco dos títulos lastreados em crédito. O Valor ouviu cerca de 15 funcionários, ex-funcionários e ex-diretores e ex-presidentes do Banco Central para avaliar as mudanças nas duas áreas.

As declarações públicas de Meirelles em defesa da fiscalização contrastam com uma mudança ocorrida nos departamentos nos últimos anos. Há algum tempo o BC deixou de fazer as tão temidas as Inspeções Gerais Consolidadas (IGC), criadas após a quebra do Banco Nacional, na década de 90. Os bancos recebiam visitas de missões com dezenas de fiscais do BC que procuravam avaliar as carteiras dos bancos como um todo. Agora o BC adotou um sistema baseado na estimativa do risco da instituição financeira, semelhante às notas atribuídas pelas empresas de rating, baseado em informações fornecidas pelos próprios bancos. A presença física de fiscais diminuiu.

O Banco Central argumenta que a mudança justifica-se pela grande redução do risco sistêmico com a criação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). O SPB mostra em tempo real qualquer problema de liquidez de instituições financeiras e, antes dele, o BC corria risco diário de R$ 10 bilhões até a liquidação das operações de interbancário. O BC tem hoje mais acesso remoto (pelos sistemas eletrônicos) às posições dos bancos, do interbancário às clearings - e por isso as notas atribuídas como rating pelo BC seriam mais próximas do risco real do que as estimativas das agências, que não têm poder regulatório. Também acompanha indicadores que detonam processos de fiscalização específicos em caso de anormalidade. O modelo é usado por países do G7 e pelo Chile.

Mas alguns funcionários do departamento de fiscalização acham que a verificação in loco de documentos, tanto em crédito quanto em remessas, era uma parte relevante da supervisão que perdeu importância. "Não se verifica mais documentação de crédito, por exemplo", afirma um funcionário da fiscalização.

Entre as estatísticas que chamam a atenção está a drástica redução de comunicação de crimes financeiros pelo Banco Central ao Ministério Público. Entre 1997 e 2000, as comunicações oscilavam entre 1.200 e 1.600 anuais. Começaram a cair a partir de 2001 e no ano passado atingiram um número mínimo: apenas 34 casos. A maior parte da redução é explicada pela mudança na legislação cambial e de operações de crédito rural.

A legislação cambial foi simplificada e muitas das autuações aplicadas pelo BC no início da década foram derrubadas por votos no Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (conhecido como "conselhinho"). Além de a legislação ser bem menos detalhada, o departamento não faz mais denúncias baseadas em questões com jurisprudência de absolvição no Conselhinho. "As denúncias passam por um filtro com a necessária aprovação de todo departamento", afirma um funcionário da fiscalização.

Na área de normas, especialmente, há uma percepção do mercado de uma atuação mais lenta. A última regulamentação que provocou mudança expressiva na atuação dos bancos foi a limitação de posições cambiais, decretada em junho do ano passado e que forçou um ajuste.

Dois outros assuntos estão em discussão já há um bom tempo, mas ainda não geraram normas: a contabilização de vendas de carteiras de crédito para fundos de investimento e a captação de depósitos por meio de operações com debêntures.

O ponto mais polêmico é a contabilização de vendas de carteira de crédito por bancos médios. Muitos bancos vendem as carteiras para fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) ou instituições maiores e reconhecem imediatamente o ganho com a venda. Para os bancos que abriram capital, a CVM exigiu que o reconhecimento do ganho com a venda fosse diferido ao longo do tempo do contrato, por acreditar que em muitos casos a originação do crédito era feita com objetivo de venda da carteira e apuração desses lucros. Como o BC não exige o mesmo critério que a CVM, alguns bancos que abriram o capital no mercado, como o Panamericano, publicaram dois balanços diferentes em seus prospectos. Uma das dúvidas do mercado é a parcela de transferência do risco na venda de carteiras para Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Em muitos casos não está claro até que ponto o investidor perde ou o banco salda perdas com inadimplência.

No fim do primeiro semestre do ano passado, o Banco Central colocou em audiência pública uma norma que mudava a contabilidade de carteiras cedidas, criando uma regra semelhante à já adotada pela CVM. A idéia seria fazer os bancos reconhecer os ganhos de venda de carteira ao longo do contrato. Houve centenas de sugestões e reclamações de bancos, principalmente médios, que temem a necessidade de aumentar capital com a nova regulamentação - mais comprometimento de patrimônio em relação às linhas de crédito.

Havia a expectativa de que a norma saísse no fim do ano passado e tivesse que ser cumprida pelos bancos em 2008, mas isso não ocorreu. O BC diz que não abandonou a proposta de edição de uma norma sobre o assunto. "Os trabalhos relativos à Audiência Pública nº 29 sobre o estabelecimento de procedimentos para classificação, registro contábil e divulgação de operações de venda ou de transferência de ativos financeiros seguem em curso e encontram-se na fase de análise das recomendações recebidas", informou o departamento de normas.

A questão da captação de depósitos também mostra alguma lentidão na reação do Banco Central à exploração de brechas legais pelos bancos.

Um exemplo são as operações feitas com debêntures para captação de depósitos. Há pelo menos um ano e meio são documentadas operações com debêntures de empresas de leasing desenhadas com o objetivo específico de reduzir a base de cálculo do recolhimento de depósito compulsório sobre depósitos a prazo. As empresas de leasing emitem debêntures a prazos longos e pagando 100% do CDI, que são compradas integralmente pela tesouraria dos bancos. Depois, as debêntures são usadas em operações compromissadas para captação de depósitos, de maneira semelhante a um CDB. Mas esses depósitos não são garantidos pelo Fundo Garantidor de Depósitos (FGC) nem pagam depósito compulsório, resultando em rendimento maior para o aplicador.

Na década de 90 era comum que o Banco Central, ao detectar esse tipo de manobra, baixasse resoluções tentando coibir operações desenhadas para aproveitar brechas. Mas isso não ocorreu neste caso, e bancos até vendem as operações compromissadas em agência afirmando que se houvesse algum problema, o BC já as teria proibido.

Consultado, o Banco Central informou que adota, sempre que necessário, medidas para garantir o bom funcionamento do sistema e que está atento ao mercado. A resposta oficial insinua a criação de uma medida contra as operações, mas não afirma que ela existirá. "Por normas de governança, não comentamos decisões futuras tal qual a maioria dos bancos centrais". As empresas de leasing emitiram mais de R$ 30 bilhões em debêntures no ano passado, mas não há estatísticas públicas disponíveis sobre quanto desses papéis foi usado para captação de depósitos ou negociação no mercado interbancário. Um dos maiores banqueiros brasileiros afirma que o ranking de depósitos do BC está distorcido por não refletir a captação total com essas operações.

No ano passado, a área de normas adotou duas medidas restritivas que desagradaram aos bancos, como a criação obrigatória das ouvidorias e normas de ajuste de carteiras de câmbio.

Também chamou a atenção do mercado a grande participação do Ministério da Fazenda na negociação do pacote de tarifas bancárias. Embora o ministro Mantega tenha aparecido muito durante a negociação e a edição do pacote, fontes do Banco Central afirmam que o banco envolveu-se em todas as fases da negociação - só não fez publicidade de sua participação.

Fontes do setor financeiro afirmam que o BC não foi consultado para elaboração das normas que elevaram o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) como compensação para a extinção da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira). A falta de detalhamento técnico provocou paralisia no mercado interbancário no primeiro dia após a edição das medidas, e a necessidade de posteriores revisões.

Alguns ex-diretores e funcionários do Banco Central vêem no conjunto de mudanças um "enfraquecimento institucional" do papel regulatório. O BC estaria mirando o modelo do Federal Reserve, no qual a maior parte das atividades de supervisão está em outros órgãos, como o Office of the Comptroller of the Currency (OCC)? Historicamente a separação foi um dos fatores na geração de crises bancárias, como na Venezuela. Imputa-se parte da crise atual nos EUA à fraqueza da fiscalização. O Banco Central nega que esse seja seu objetivo, afirmando que a prioridade à fiscalização continua a mesma. Para o BC, o que houve foi uma "evolução" de áreas como a da fiscalização por conta da maior presença de sistemas eletrônicos que permitem monitorar os bancos à distância.