Título: A ilusão do endividamento
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 12/02/2008, Opinião, p. A13

Um segundo grande corte na taxa de juros americana em uma semana, aliado a um plano de incentivo econômico que uniu republicanos e democratas, demonstra que os formuladores de política dos EUA estão empenhados em deter uma recessão que aparenta ser conseqüência dos calotes crescentes no setor imobiliário e da queda nos preços das moradias. Existe um problema mais profundo, porém, que tem sido ignorado: a economia dos EUA depende da inflação nos preços dos ativos e do endividamento crescente para alimentar o crescimento.

Neste ponto reside uma contradição profunda. Por um lado, a política deve estimular as bolhas de ativos para manter a economia crescendo. Por outro, tais bolhas inevitavelmente geram crises financeiras quando implodem em algum momento no futuro. Trata-se de uma contradição com implicações globais. Muitos países se apoiaram para seu crescimento nos gastos dos consumidores dos EUA e nos investimentos na terceirização de recursos para suprir esses consumidores. Se a bolha da economia dos Estados Unidos for explodida agora, o crescimento global desacelerará acentuadamente. Não está claro se os demais países terão a determinação ou a capacidade para desenvolver propulsores de crescimento alternativos.

As contradições econômicas dos EUA são parte de um novo ciclo de negócios que despontou a partir de 1980. Os ciclos de negócios dos presidentes Ronald Reagan, George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush compartilham fortes semelhanças e são diferentes dos ciclos anteriores a 1980. As semelhanças são os vastos déficits na balança comercial, perda de postos de trabalho no setor manufatureiro, inflação nos preços dos ativos, crescentes coeficientes de dívida em relação à renda e desvinculação dos salários do crescimento da produtividade.

O novo ciclo se apóia nas vigorosas expansões financeiras e em importações baratas. Expansões financeiras vigorosas fornecem garantias adicionais que dão sustentação a gastos financiados com dívida. A contratação de empréstimos também é sustentada por um afrouxamento dos padrões de crédito e por novos produtos financeiros que aumentam a alavancagem e ampliam a gama de ativos que podem ser usados para a captação de novos empréstimos.

Esta estrutura contrasta com o ciclo de negócios anterior a 1980, que estava baseada no crescimento dos salários vinculados à produtividade e ao pleno emprego. O crescimento dos salários, ao contrário das tomadas de empréstimo e fortes expansões financeiras, alimentava o crescimento da demanda. Isso estimulava o gasto com investimentos, que por sua vez impulsionava ganhos de produtividade e crescimento da produção.

As diferenças entre o ciclo novo e o antigo são reveladas de forma incisiva nas atitudes em relação ao déficit da balança comercial. Anteriormente, os déficits na balança comercial eram vistos como um problema grave, representando uma perda de demanda que minava o emprego e a produção. Desde 1980, os déficits na balança comercial têm sido minimizados como sendo o resultado de escolhas de livre mercado. Além disso, o banco central dos EUA tem considerado os déficits da balança comercial como um freio útil sobre a inflação, ao passo que agora os políticos os encaram como uma forma de subornar consumidores aflitos com a estagnação salarial.

-------------------------------------------------------------------------------- A economia tem se tornado tão vulnerável a declínios nos preços dos ativos que o Fed se vê obrigado a intervir para evitar que eles causem vastas perdas --------------------------------------------------------------------------------

O novo ciclo de negócios também embute uma política monetária que substitui a preocupação com os salários reais por um enfoque nos preços dos ativos. Enquanto a polícia monetária anterior a 1980 visava tacitamente estabelecer um piso sobre os mercados de trabalho para preservar os níveis de emprego e de salários, agora ela tacitamente estabelece um piso sobre preços dos ativos. Não se trata de o Fed estar socorrendo investidores. Pelo contrário, a economia tem se tornado tão vulnerável a declínios nos preços dos ativos que o Fed se vê obrigado a intervir para evitar que eles causem vastas perdas.

Todos esses componentes estiveram presentes na expansão econômica atual. Os salários estagnaram, apesar do vigoroso crescimento da produtividade, enquanto o déficit da balança comercial estabelecia novos recordes. O setor produtivo perdeu 1,8 milhão de postos de trabalho. Antes de 1980, o emprego industrial aumentou a cada expansão e sempre superou o nível do pico anterior. Entre 1980 e 2000, o emprego industrial continuou crescendo em expansões, mas nunca conseguia recuperar o pico anterior. Desta vez, na verdade o emprego industrial caiu durante a expansão, algo inédito na história americana.

O papel essencial da inflação de ativos tem sido especialmente visível como resultado da bolha habitacional, que também realça o papel da política monetária. Apesar dos volumosos cortes fiscais de 2001 e do aumento nos gastos militares e de segurança, os EUA experimentaram uma prolongada recuperação nos índices de desemprego. Isto levou o Fed a manter as taxas de juros em níveis historicamente baixos por um período extenso, e as taxas só foram elevadas gradualmente devido a temores em torno da fragilidade da recuperação.

As baixas taxas de juros acabaram impulsionando a expansão por meio de uma bolha de preços de moradias, que sustentou uma farra de gastos de consumidores financiada com endividamento e desencadeou uma vigorosa expansão no setor da construção civil. Enquanto isto, as taxas de juros prolongadas contribuíram para uma "caça ao rendimento" no setor financeiro, que resultou no desprezo ao risco de crédito.

Desta forma, o Fed contribuiu para criar a crise dos créditos hipotecários de risco. Em defesa do Fed, contudo, as baixas taxas de juros foram necessárias para manter a expansão. Na verdade, o novo ciclo trava o Fed numa postura instável, pela qual ela deve impedir quedas nos preços dos ativos para evitar a recessão, porém deve também promover bolhas de ativos para sustentar expansões.

Desta forma, mesmo que o Fed e o Tesouro dos EUA agora consigam manter a inflação à distância, o que alimentará o crescimento futuro? Com os elevados serviços de dívida e com os preços de moradias em níveis significativamente acima do justificado por sua relação histórica em relação à renda, o ciclo de negócios das duas décadas passadas parece ter se esgotado.

Não basta lidar apenas com a crise do dia. A política deve também traçar um caminho de longo prazo, o que implica a necessidade de reconsiderar o paradigma dos 25 anos passados. Isso significa eliminar déficits comerciais que drenam gastos e postos de trabalho, e restaurar o vínculo entre salários e produtividade. Desta forma, a receita dos salários, não endividamento e inflação de preços de ativos, pode mais uma vez fornecer o motor do crescimento da demanda.

Thomas Palley foi economista-chefe da US-China Economic and Security Review Commission; é também autor de "Post-Keynesian Economics". © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org