Título: Os desafios da política econômica em 2008
Autor: Barros, Carlos Mendonça de ; Miguel, Paulo Pereira
Fonte: Valor Econômico, 14/01/2008, Finanças, p. C10

Entramos no quinto ano de expansão econômica continuada com novos desafios na gestão da política monetária. Um sentimento de euforia domina os agentes econômicos diante de uma perspectiva extremamente favorável para consumidores, investidores e empresas em 2008. Do lado do governo também é visível o otimismo com um ciclo econômico virtuoso que permite uma arrecadação de tributos crescente e, como conseqüência, uma expansão dos gastos públicos sem precedentes.

Chegamos a esta situação depois que o crescimento econômico mundial dos últimos cinco anos provocou uma mudança radical nos preços relativos de inúmeras commodities das quais o Brasil é um dos maiores e mais eficientes produtores. Este ciclo de preços elevados levou, entre 2004 e 2006, a uma mudança radical em nossas contas externas. Os saldos de nosso comércio internacional permitiram que o país passasse a acumular volumes crescentes de reservas cambiais, deixando para trás décadas de recorrentes crises externas.

Com a consolidação deste novo quadro, vultosos investimentos financeiros vieram se somar ao saldo comercial, fazendo com que, ao fim de 2007, chegássemos à incrível marca de US$ 180 bilhões em reservas internacionais. Somente neste ano que passou a entrada líquida de dólares no país chegou a quase US$ 90 bilhões, cifra próxima ao aumento de reservas da Índia no mesmo período. Parte importante desses recursos entrou no mercado local de títulos de renda fixa, provocando uma queda expressiva dos juros e acelerando o desenvolvimento do mercado a termo de juros. Com a disponibilidade desse novo instrumento de sinalização e proteção, além da boa perspectiva para a economia, o sistema bancário aumentou agressivamente suas carteiras de crédito ao consumo. Com isto foram criadas condições favoráveis, junto com o aumento da renda e do emprego, para o crescimento do gasto das famílias, em torno de 6% ao ano nos últimos trimestres.

Além disso, com as condições macroeconômicas estabilizadas e juros mais baixos, as empresas brasileiras passaram a investir fortemente em novas unidades de produção. O aumento das importações - no início bens de consumo e, mais recentemente, de máquinas e equipamentos - criou uma ponte de oferta entre o aumento da demanda e a resposta mais lenta da produção, evitando desta vez a armadilha chamada de vôo da galinha, observada em ciclos anteriores. Até meados de 2007, o efeito microeconômico do aumento do investimento e da penetração das importações dominou a conjuntura inflacionária.

Outro elemento fundamental para o bom desempenho da economia brasileira foi - e continua sendo - a conjuntura internacional. Vivemos neste início de ano um período de grande excitação, que nem mesmo a possibilidade de recessão moderada nos Estados Unidos consegue reverter. Este comportamento está diretamente ligado ao fenômeno chamado de descolamento ("decoupling"), criado pela nova dimensão econômica do mundo emergente em função do dinamismo da economia chinesa, à qual o Brasil está intimamente ligado. A melhor prova dessa realidade, que muitos preferem não enxergar, são os preços das commodities nesta virada do ano, que têm atingido novas máximas, apesar da iminência de uma recessão nos EUA, fato inédito desde os anos 1970. Os mercados acionários de vários países asiáticos continuam no pico e a perspectiva de continuidade do crescimento global é favorável.

Contudo, mesmo com a situação internacional no geral favorável ao Brasil, nossa economia precisa ser vista sob a ótica da sua dinâmica interna. Uma análise mais cuidadosa nos mostra que estão em ação, neste início de 2008, três forças de origens diversas e que se somam na direção de um aquecimento potencialmente excessivo da economia. No primeiro grupo colocaríamos as que derivam de um comportamento clássico do agente econômico em uma economia de mercado e que Keynes definiu como "espírito animal". Em um ambiente de otimismo generalizado, consumidores, investidores e empresários agem com grande confiança em suas tomadas de decisão. E neste processo apostam na direção de continuidade do ciclo virtuoso do crescimento, correndo riscos maiores e renegando a possibilidade de ocorrência de problemas à frente.

A grande arte da política econômica é operar as ferramentas fiscal e monetária para atingir o pleno emprego com baixa inflação, o que implica não destruir o otimismo do setor privado, principalmente no que afeta o investimento. Isso nos leva à segunda força, a política fiscal. Alertamos repetidas vezes que a correta gestão da política econômica nessa conjuntura de aceleração da demanda privada teria sido recolher o estímulo fiscal, o que infelizmente não foi feito, aumentando em demasia os riscos inflacionários conforme o espaço ocioso na economia era ocupado.

O terceiro grupo de forças pró-cíclicas é o movimento microeconômico de ajustes dos desvios que herdamos de nosso passado de instabilidades e crises. Um exemplo marcante desse fenômeno é o crescimento do volume de crédito no sistema bancário. Já atingimos hoje indicadores - como a relação crédito/PIB - que estão em linha com outras economias emergentes, quando é expurgado o segmento imobiliário ainda nascente em nosso caso. Como sempre acontece no Brasil, essa convergência se deu em prazo muito exíguo de tempo, criando condições perigosas no campo dos preços.

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Em pouco tempo passamos de um crescimento da ordem de 3% ao ano para um ritmo de 5% ao ano. No mercado de trabalho assistimos a uma redução significativa da taxa de desemprego e os primeiros sinais de falta de mão de obra especializada. As naturais pressões sobre salários, apesar de ainda incipientes, devem ser consideradas com atenção. A intensidade dessas mudanças, na rapidez com que têm ocorrido, pode criar pressões de preços em mercados que não podem ser atingidos pelas importações. As medidas de inflação mais recentes mostram sinais dessas pressões, que, a continuar esse ambiente de euforia, poderão se acentuar em 2008.

Não há outra forma de enfrentar essa conjuntura senão com medidas que reduzam o ritmo do consumo e, ao mesmo tempo, tentem preservar os investimentos públicos e privados. O primeiro passo já foi dado pelo Banco Central, ao interromper o ciclo de redução de juros em outubro do ano passado. Atualmente a principal ferramenta a ser explorada é a redução do ritmo de crescimento dos gastos do governo, que tem se mantido acima de 10% ao ano.

Mesmo com o anúncio do corte de R$ 20 bilhões, há dúvidas sobre a real disposição do governo em perseverar neste caminho, a julgar inclusive pela crença de seus economistas no virtuosismo de gastos públicos sempre crescentes, no que chamamos de "macroeconomia do moto-contínuo". Para esses, o Estado seria "raquítico" no Brasil, o que por si só não autoriza muito otimismo sobre corte de gastos. A verdade é que o chamado PAC, inicialmente restrito aos investimentos em infra-estrutura, é hoje um amplo programa de gastos correntes. Na situação em que vivemos - risco de inflação por excesso de demanda - transformou-se hoje em um Programa de Desaceleração de Crescimento, ou seja, o oposto do que pretende o governo.

Um segundo canal claro a ser utilizado é o da redução do ritmo de crescimento do crédito ao consumo, um dos veículos mais importantes na aceleração do gasto privado. As previsões dos maiores bancos do país são que ele continue a crescer a mais de 20% ao ano em 2008, sustentando o consumo das familias. A princípio, seria necessário um aumento expressivo do custo do crédito para que esta situação fosse revertida. O aumento recente do IOF foi um primeiro passo nesta direção, pois representou um aumento entre 1% e 1,5% na taxa de juros efetiva dos empréstimos, dependendo do prazo. Na forma com que foi definido o IOF, não houve aumento dos juros no crédito corporativo e do setor imobiliário, o que preserva o movimento saudável de aumento dos investimentos.

Mas no estado atual de euforia do consumidor é plausível que este aumento tenha um reflexo pequeno na expansão do crédito. No momento em que escrevemos este artigo o presidente da Fenabrave declara à imprensa que não acredita que o aumento do IOF vá afetar as vendas "pois em um financiamento de R$ 25 mil em cinco anos, vai haver aumento da prestação de apenas R$ 23 ao mês. "A economista Marina Santos da equipe da Quest Investimentos calculou o impacto do aumento do IOF em um empréstimo de R$ 30 mil pelo mesmo prazo de cinco anos e chegou a um aumento de R$ 13 na prestação. Esse aumento corresponde a uma elevação próxima a 1% ponto na taxa Selic, assumindo os mesmos spreads e taxas de juros operados hoje pelos maiores financiadores de compra de automóveis.

Esses números mostram as dificuldades de se reduzir o crescimento das operações de financiamento do consumo via o canal dos juros. Há a possibilidade de uma mudança na percepção dos bancos sobre os riscos de crédito, caso a inadimplência cresça subitamente, o que contribuiria para restringir a oferta de crédito. O crescimento de emprego e renda indica que a inadimplência continuará baixa, mas será importante monitorá-la especialmente no primeiro trimestre, tipicamente o pior período para o consumidor. Se houver alguma acomodação na demanda e na oferta de crédito, o que hoje é apenas uma possibilidade, os riscos de aquecimento excessivo de demanda seriam reduzidos sensivelmente.

Por fim, resta o caminho de um aumento da taxa Selic para conter a demanda agregada. Este instrumento é mais poderoso, pois neste caso seria atingida a totalidade das operações de crédito, inclusive os investimentos, o que não é desejável. Mas o fato é que há um risco importante que o Banco Central seja obrigado a trilhar este caminho ainda ao longo da primeira metade deste ano. Especialmente no primeiro trimestre será fundamental monitorar a inflação efetiva, especialmente a parte de serviços e alimentos, o ritmo de crescimento da demanda, se haverá alguma acomodação na utilização de capacidade da indústria, etc.

Depois de anos surfando uma onda favorável sem grandes problemas e administrando a bonança, a gestão da política econômica enfrentará novos desafios em 2008, para os quais não há manual pronto. Especialmente a combinação das políticas monetária e fiscal viverá o famoso dilema: para preservar uma, terá que haver escolhas desagradáveis na outra, coisa a que o governo não está acostumado. O período de gastos públicos explosivos, afrouxamento monetário e inflação em queda chegou ao fim. Se o governo fizer as escolhas erradas em 2008, o Banco Central poderá ser obrigado a arcar sozinho com a parte desagradável de provocar um desaquecimento importante da economia, comprometendo mais uma vez os investimentos. E nós sabemos que o BC brasileiro conhece bem o ensinamento de William McChesney, presidente do Fed entre 1951 e 1970. Ele dizia que cabe ao Banco Central levar embora o "pote de ponche" quando a festa começa a embalar.

Luiz Carlos Mendonça de Barros e Paulo Pereira Miguel são economistas