Título: Legislativo tem que resolver impasse das MPs
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Fonte: Valor Econômico, 15/02/2008, Opinião, p. A12

Desde a Constituinte de 1988, e após sucessivos governos ditatoriais que usaram e abusaram dos famigerados decretos-lei, qualquer debate sobre o equilíbrio entre os poderes na peculiar democracia brasileira passa pela lógica do ovo e da galinha. Afinal, o que veio primeiro, a inépcia do Legislativo ou o furor legiferante do Executivo, consubstanciado num oceano de decretos-lei, antes de 1989, ou de medidas provisórias, depois da promulgação da Constituição da Nova República? Seria prudente defender alterações e limites maiores às MPs, quando nem uma maioria parlamentar robusta garante a qualquer governo não ser paralisado pelo Congresso?

As perguntas são muitas, as opiniões díspares, mas a realidade é implacável: quase 19 anos depois da promulgação da Carta, que foi o coroamento do processo de transição democrática, o Congresso continua sucumbindo a uma avalanche de medidas provisórias e o Executivo permanece acuado pela inação parlamentar. O ano parlamentar de 2008 inicia-se com uma fila de medidas provisórias que trancam a pauta legislativa e acena para uma repetição de 2007, quando a Câmara, segundo a consultoria Tendências, gastou 65% das suas 166 sessões deliberativas para apreciar MPs.

O passado autoritário impregnou a cultura política brasileira e o poder de legislar conferido ao Executivo faz parte dessa história. Segundo Idma Resende ("Medidas provisórias e emenda constitucional nº 32/01", Jus Navegandi), durante a ditadura Getúlio Vargas o Executivo editou nada menos do que 9.908 decretos-lei. A Constituição democrática de 1946 eliminou esse instrumento, que só voltou em 1965, já sob a égide do regime militar. Inventado e reinventado nos sucessivos Atos Institucionais, o decreto-lei, enfim, foi incorporado como norma definitiva na Constituição de 1969, ela própria filha de um ato de exceção.

A Constituinte de 1988 debateu-se entre a eliminação pura e simples do decreto-lei ou sua substituição por algum instrumento aparentemente mais democrático, que pudesse suprir uma já visível dificuldade do Executivo de aprovar leis que exigissem maior agilidade, numa conjuntura em que o governo era fraco, a maioria instável e a economia declinante. Foram os decretos-lei que fizeram valer os sucessivos e fracassados planos econômicos do governo Sarney. Os governos posteriores se valeram das medidas provisórias para fazer suas próprias mágicas, inclusive a de sumir com dinheiro de correntista em banco, como fez o Plano Collor.

O uso abusivo das MPs nos governos que sucederam à sua criação mostrou que ela mudou de nome, mas continua tão antidemocrática como o famigerado decreto-lei. O problema é saber como limitar o seu uso sem, ao mesmo tempo, paralisar o Executivo ou submetê-lo a negociações intermináveis e nem sempre legítimas, a cada votação de seu interesse.

Em 2001, o Congresso, em negociação com o governo Fernando Henrique Cardoso, aprovou uma emenda limitando o uso das MPs. E provou que, nessa matéria, nenhuma mudança consegue ser saneadora se a cultura não mudar - no que se refere ao poder de chantagem de parlamentares ou à sanha legiferante do governo. Para conter o avanço do Executivo sobre a atividade legislativa, a Emenda nº 32 definiu que a MP valeria por apenas 30 dias e poderia ser reeditada uma única vez. Para obrigar o Legislativo a fazer a sua parte, definiu que, passados 45 dias de sua publicação, ela passaria a trancar a pauta de votações. A combinação de punir Executivo e Legislativo por excessos não funcionou. O poder das MPs de paralisar o Congresso foi maior do que o da emenda de conter o Executivo, ou de obrigar os parlamentares a votarem-nas em tempo hábil.

O presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), faz nova tentativa para romper o impasse das MPs: submetê-las a uma comissão do Congresso, que analisaria se atendem aos requisitos de relevância e urgência definidos pela Constituição e devolveria as que não se enquadrassem nesse perfil; e retirar o poder que elas têm de trancar a pauta do Legislativo. A discussão está na mesa e é importante que os parlamentares e o governo definam o momento seguinte de adequação das MPs ao regime democrático. É igualmente importante, no entanto, que Legislativo e Executivo revejam suas posturas em relação às suas próprias atribuições constitucionais.