Título: Sob uma Constituição inacabada
Autor: Almeida, Edson Pinto de
Fonte: Valor Econômico, 15/02/2008, Cultura, p. 5

Lula Marques / Folha Imagem Ulysses Guimarães assina a promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988: visão nacionalista A Constituição de 1988, que completa 20 anos em 5 de outubro, é um espelho do Brasil naquilo que o país tem de melhor e de pior - sobretudo em suas contradições. Muitos especialistas garantem que essa Carta foi a mais debatida e a que mais mobilizou a sociedade brasileira. Aberta a propostas de emendas populares, desde que subscritas por 30 mil assinaturas, a Assembléia Constituinte, presidida por Ulysses Guimarães (1916-1992), recebeu ao longo de seus trabalhos, iniciados em 1987, 120 propostas de emendas constitucionais, num total de 12 milhões de assinaturas.

Lideranças sindicais, empresários, banqueiros, fazendeiros e outros grupos influentes buscaram defender seus interesses. De uma forma ou de outra, todos levaram o seu quinhão. Uns mais, outros menos. Essa é a razão pela qual até hoje o texto constitucional vem sendo alterado. Nesses 20 anos já foram feitas 61 emendas, além de 55 processos ordinários e 6 processos de revisão constitucional. Há outros 400 projetos de emendas constitucionais no Senado e 1.200 na Câmara.

Luciano Andrade / Folha Imagem Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e Mário Covas lançam o PSDB, em 1988: descontentes com a derrota da proposta de parlamentarismo em plenário, eles abandonaram o PMDB para fundar o partido "Acima de tudo, a Constituição de 1988 foi uma obra de engenharia política e cumpriu seu papel essencial de promover uma transição estável", afirma o cientista político Amaury de Souza, sócio-diretor da MCM Consultores. Do ponto de vista político, de fato, ela é emblemática, pois encerrou o ciclo de poder militar iniciado em 1964. Em seus 250 artigos e 94 disposições transitórias trouxe de volta de forma abrangente direitos e garantias fundamentais que estavam suspensos - o que em parte faz jus ao seu apelido de "cidadã".

"Pela primeira vez, o capítulo relativo aos direitos fundamentais, no artigo 5º, foi colocado no início do documento. Na Constituição de 1967, por exemplo, essa parte estava no artigo 147 depois que o texto esgotava a questão da organização do Estado", observa Oscar Vilhena Vieira, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Em outros aspectos, porém, a obra de engenharia ficou sem acabamento e, pelo que parece, levará um bom tempo até ser concluída. "Será um trabalho para duas gerações pelo menos, diz o ex-ministro da Fazenda e hoje consultor Maílson da Nóbrega. A parte "inacabada" da obra diz respeito, sobretudo, aos aspectos da administração pública, ao sistema tributário, finanças e orçamento, além da representação política.

O ministro da Justiça, Tarso Genro, admite que não há uma leitura unificada e simples da Constituição. "Nossa realidade é complexa e nada mais natural que se façam emendas para construir a ponte com essa realidade. O importante é que não se perca o caráter programático social que a Constituição de 88 construiu", afirma.

O problema mais apontado é que, ao escrever o texto da Carta de 1988, os constituintes pecaram pelo excesso. É o oposto da concisão dos 7 artigos e 27 emendas da Constituição americana. "Todas as políticas públicas estão descritas no texto constitucional. Não se colocaram apenas diretrizes, mas também todo o detalhamento da execução", diz Amaury de Souza. Com isso, explica, o governo não pode mexer no orçamento porque 90% das despesas são obrigatórias.

O excesso de normas, segundo Fábio Konder Comparato, professor aposentado de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sempre foi uma característica das Constituições brasileiras. "Mas a razão está no fato de que o nosso Judiciário tem sido escravo da letra da norma e não aprendeu ainda a julgar com base nos princípios gerais. Por isso, os constituintes procuram multiplicar as normas específicas", observa. A seu ver, a Constituição trouxe avanços pricipalmente na parte de garantias individuais e direitos humanos. Mas não criou a proteção dos direitos sociais.

"Em matéria de direitos fundamentais é a Constituição mais moderna que o Brasil já teve. Mas em matéria de estrutura de poder criou uma federação maior do que o PIB", afirma o jurista Ives Gandra Martins. "Criou-se uma máquina esclerosada e uma carga tributária enorme. É a única Constituição que dá aos municípios total autonomia como entidades federativas. Temos hoje 5.500 entidades federativas. O Estado não entra no PIB."

A comparação que se faz da Carta brasileira com a americana pode não ser totalmente adequada se for considerada apenas a questão do tamanho. "É natural que uma Constituição do século XX seja mais carregada do que uma Constituição do século XVIII. Naquela época não havia discussões sobre célula-tronco e tampouco se falava em Previdência Social. A Constituição Européia, que recebeu o não na França, é enorme. Tamanho não é necessariamente problema nem um diferencial", diz o professor Vilhena, da FGV.

De acordo com o professor, a principal diferença é que a Constituição americana reflete uma posição de consenso naquilo que se pode chamar de segunda opção da vontade de cada um dos que a escreveram. Já a brasileira é marcada por forte corporativismo. Núcleos bem articulados conseguiram fazer valer suas reivindicações - impondo, por assim dizer, sua primeira opção. Dessa forma, os grupos organizados conseguiram tudo o que queriam. Uma decisão bloqueia a outra. "Os constituintes se concentraram em escolhas substantivas, que acabam não resistindo às mudanças socioeconômicas", analisa Vilhena.

Mudanças que não demorariam a vir. Em 1989 caía o Muro de Berlim. O mundo, que já assistia à ascensão do neoliberalismo nos Estados Unidos e na Inglaterra, passou a aderir ao Consenso de Washington, que tem na privatização sua palavra de ordem. "Navegávamos uma maré neoliberal, mas fizemos uma Constituição nacionalista", admite Plínio de Arruda Sampaio, ex-constituinte pelo PT e hoje dirigente do PSOL. "A visão nacionalista só não foi maior porque o Centrão conseguiu na última hora mudar o regimento da Constituinte e com isso segurar alguma coisa."

Só para recordar, Centrão foi o apelido dado ao grupo denominado Centro Democrático, formado por parlamentares do PMDB, PFL, PDS e PTB, além de outros partidos menores que formavam a base de apoio do presidente José Sarney. O grupo conservador influiu decisivamente no resultado de votações importantes, como a duração do mandato do presidente - que passou de seis para cinco anos -, a questão da reforma agrária, impedindo que fosse feita em terras produtivas, e o papel das Forças Armadas.

Em outros pontos, porém, os grupos mais à esquerda da época foram vitoriosos - pelo menos temporariamente. O capítulo da Ordem Econômica, cujo relator foi o senador peemedebista Severo Gomes (1924-1992), que consagrava o monopólio estatal e fazia distinção entre empresas brasileiras e estrangeiras, foi modificado em 1995, abrindo caminho para o fim do monopólio estatal em várias áreas e para a privatização das telecomunicações e de outros serviços. Outro ponto que as forças de esquerda e nacionalistas fizeram passar foi o tabelamento dos juros reais em 12% ao ano, proposta pelo deputado Fernando Gasparian (1930-2006).

A medida, na verdade, nunca foi aplicada. Na época, o consultor-geral da República, Saulo Ramos, emitiu parecer - ratificado pelo Supremo Tribunal Federal - pelo qual o artigo dependia de lei específica para ser aplicado. A emenda constitucional 40 retirou o tabelamento dos juros da Constituição em 2003.

Um ponto que, na opinião geral, não ficou bem resolvido no texto da Constituição diz respeito à repartição de poderes e de recursos entre a União, Estados e municípios. "A Constituição deu novos poderes aos Estados. Deu tarefas, mas não os recursos. Foi generosa ao conceder direitos sociais, mas não instituiu mecanismos financeiros para a cobrança desses direitos e para controlar essas decisões. Promete educação e saúde como direito de todos e dever do Estado, mas não há como cobrar esse direito igualmente", aponta José Reinaldo Lima Lopes, professor de História do Pensamento Jurídico da USP e da FGV.

Para o professor Simão Davi Silber, do Departamento de Economia da FEA/USP, essa foi uma vingança contra o centralismo do governo militar. O artigo 18 da Constituição aumentou de 33% para 47% a destinação de recursos do Imposto de Renda e 57% do IPI para os Estados e municípios. A União perdeu 14% da arrecadação desses impostos e transferiu para os Estados a arrecadação dos chamados impostos únicos, de energia elétrica, transportes e mineração.

"O governo federal perdeu o interesse em arrecadar mais Imposto de Renda e IPI porque precisa repartir essa receita. E, para conseguir mais dinheiro, foi criando novos impostos, como Cofins, CSLL e a extinta CPMF. A carga tributária, que era de 20% do PIB, passou para 36% do PIB", diz Silber.

A conseqüência é que piorou o sistema tributário. Ficou complicado para a União, que precisa de mais recursos para fazer frente às despesas. "De cada R$ 1,00 que a União arrecada, ela fica com R$ 0,41 do Imposto de Renda e R$ 0,32 do IPI", informa Maílson da Nóbrega. Para ele, os tributos que não são partilhados, além de ampliar a carga tributária, são piores na qualidade, pois incidem em cascata: "Esse é o efeito mais grave da Constituição. Não se resolve a curto prazo. Uma das saídas é voltar o ICMS às suas origens e eliminar o poder dos Estados."

Silber distingue três ciclos decorrentes de 1988. Todos dizem respeito à forma pela qual o governo vem pagando a conta por tudo aquilo que a Constituição promete, mas nem sempre consegue cumprir. O primeiro deles, a partir do governo Sarney até o de Itamar Franco, foi o de emissão de dinheiro, gerando inflação, que durou até o Plano Real. O segundo ciclo, no governo Fernando Henrique Cardoso, durou até 1999 e foi marcado pelo aumento da dívida pública. E o terceiro, que vem até o governo do presidente Lula, consagra o aumento da carga tributária.

Para Maílson da Nóbrega, nenhum desses governos se alinhou à Constituição e tampouco reconhecem seus erros. "A Constituição acelerou a crise fiscal no governo Sarney. Todos os governos aumentaram a despesa e a carga tributária ou porque quiseram ou porque foram obrigados. Vamos continuar a pagar o preço por duas gerações", observa. "As mudanças se farão à medida que forem amadurecendo as percepções da sociedade em relação a elas."

Repetindo o que disse o presidente Sarney em 1988, Silber acredita que o Brasil ficou ingovernável por causa da Constituição de 1988. "No texto há 55 vezes a menção sobre direitos e apenas 3 menções sobre obrigações", afirma. Para ele, a emenda de 1993 que criou a DRU (Desvinculação das Receitas da União) foi um avanço porque o modelo é perverso. "Quando é preciso cortar despesas, corta-se o investimento que não está vinculado", explica. Para ele, a Constituição não resgatou a dívida social. "Existe política social, mas vai para a pessoa errada. É a elite que abocanha e não o pobre. As grandes aposentadorias são do setor público. O pobre paga mais impostos do que o rico", afirma.

O ministro Tarso Genro está alinhado com a tese de que há restrições no orçamento para atender àquilo que são direitos universais consagrados pela Constituição, como a saúde. "Com o tempo, e isso estamos fazendo, os princípios sociais da Constituição estão sendo adequados à realidade. Isso leva tempo e depende fortemente de recursos orçamentários", diz. Ele admite que não é fácil concretizar o que o texto constitucional estabelece em relação à erradicação da pobreza e à qualidade de vida do brasileiro. "Mas não é a simples norma positivada que vai fazer que o mundo, no dia seguinte, seja melhor."

O professor José Reinaldo Lima Lopes também entende que jogam para a Constituição defeitos que são da prática política brasileira e da cultura jurídica do país. " O problema está mais na maneira de interpretar do que no texto em si. Ela, sozinha, não muda o Brasil", opina. Senão, como explicar o caso da jovem menor, no Pará, que foi posta em uma cela com 30 homens, apesar de todos os direitos assegurados a ela na Carta? "A justiça social não é problema da Constituição e sim do funcionamento político. Mas ela tem instrumentos para que aconteça", ressalta.

Seria muito difícil esperar que constituintes com interesses tão conflitantes fizessem nascer um documento perfeito e acabado. Para o cientista político Amaury de Souza, a Constituição, na verdade, representa um pacto, que impede uma força de prevalecer sobre a outra. As mudanças no texto dependem da aprovação de 308 dos 531 deputados e 49 dos 81 senadores, numa votação em dois turnos. As mudanças por maioria simples puderam ser feitas em 1993, durante o período de revisão constitucional, algo que já era previsto no texto original. Essa oportunidade foi praticamente perdida. Pouco se fez.

O Brasil vivia um período de crise. Houve o impeachment do ex-presidente Fernando Collor um ano antes. A economia se debatia com a hiperinflação. O clima era de grande radicalização política. A única emenda aprovada na época foi a de redução do mandato presidencial para quatro anos, sem direito à reeleição. Havia o medo de que Lula ganhasse as eleições presidenciais de 1994.

Souza acredita que a Constituição não foi empecilho para que questões cruciais fossem resolvidas. Nesses 20 anos, as instituições amadureceram, houve avanços no campo da política econômica, instituiu-se a Lei de Responsabilidade Fiscal. "O Brasil venceu a hiperinflação, reduziu a participação do Estado e abriu a economia, deu racionalidade e colocou ordem nas contas públicas, reduziu a pobreza e a desigualdade social, o que não é pouco", afirma o cientista.

Com virtudes e defeitos, a Constituição "cidadã" parece resumir a expressão "ruim com ela, pior sem ela". Fazer uma nova é algo que agrada apenas a uma minoria. "Não é oportuno que seja convocada uma nova Constituinte. Não há clima político para isso. Não houve nenhuma revolução ou rebuliço democrático que ensejasse a institucionalização do país", declara Plínio de Arruda Sampaio.

"Fazer uma nova Constituição só faz sentido num momento de ruptura. Não vai resolver o problema do país", afirma Simão David Silber. Para o cientista político Amaury de Souza "equivaleria a dar um golpe de Estado". Silber avalia que duas décadas é um período curto para fazer um julgamento mais preciso.

Atualmente o PT recolhe assinaturas para uma emenda popular pedindo uma nova Constituinte. O jurista Comparato defende a realização de uma assembléia revisora, em que seus integrantes ficariam oito anos sem poder exercer cargos públicos. Para o ministro Tarso Genro, a reforma constitucional já vem ocorrendo, com a produção de novas emendas e interpretações do Supremo Tribunal Federal.

"Falar em uma nova Constituinte significaria falar em um poder constitucional originário que alteraria as chamadas cláusulas pétreas, entre as quais estão a forma federativa do Estado, o voto secreto e universal, a independência dos poderes e os direitos e garantias individuais. Aparentemente não há intenção dos brasileiros para mudar qualquer dessas cláusulas e nem é ponto de discussão interna do governo da União", completa.