Título: Bolívia admite não ter gás para cumprir contratos com o Brasil e a Argentina
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2008, Brasil, p. A2

A crise energética na Argentina deixou Brasil e Bolívia novamente em rota de colisão. O vice-presidente boliviano, Álvaro Garcia Linera, deixou claro ontem que o país não tem como honrar integralmente contratos de fornecimento de gás natural para os dois vizinhos nos momentos de pico da demanda. Segundo ele, o governo de Evo Morales só pode garantir ao lado brasileiro, durante o inverno de 2008, a "média histórica" de envio do combustível nos últimos anos - o que representaria de 27 milhões a 29 milhões de metros cúbicos por dia.

O restante poderá ser transferido à Argentina, que vive uma intensificação de seus apagões desde a virada do ano. A capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia é de 30 milhões de m3/dia, mas o volume total pode chegar a 31 milhões de m3/dia com um processo de compressão do gás.

A primeira reação do governo brasileiro foi negativa. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, disse ao Valor que não admite a possibilidade de redução do fornecimento de gás. "Não dá nem para pensar em reduzir", afirmou, taxativo. As autoridades do setor elétrico tentam afastar qualquer risco de desabastecimento de energia em 2009. Neste ano, o atraso das chuvas esvaziou os reservatórios das hidrelétricas e obrigou o governo a acionar as usinas térmicas. Normalmente, essas usinas voltam a funcionar a todo vapor no inverno, período de seca no Brasil, para evitar queda no armazenamento de água das represas. O país precisa de gás natural e há pouca folga na oferta do insumo. "Não temos margem nenhuma (de manobra)", comentou o ministro, referindo-se à possibilidade de abrir mão do gás natural boliviano.

Apesar das gentilezas trocadas entre o vice-presidente e a diplomacia brasileira, Lobão evidenciou a distância entre as posições dos dois países. Ele quer negociar com La Paz o restabelecimento do fornecimento de gás para a usina termelétrica Mário Covas, em Cuiabá. Depois de arrancar no início do ano passado um reajuste de US$ 1,19 para US$ 4,20 para o gás enviado a Mato Grosso, cujo contrato é negociado diretamente com o setor privado, a Bolívia suspendeu a transferência de 2,2 milhões de m3 diários e deixou a térmica inativa em um momento de incerteza para a operação do sistema elétrico brasileiro. "Marcamos um encontro de empresários de Cuiabá, na Bolívia, para a próxima semana", disse Lobão. Pouco depois, Linera jogou um balde de água fria nas pretensões e afirmou que a retomada do envio de gás a Mato Grosso depende de "novos empreendimentos e mais volume".

O novo problema está no rápida crescimento da demanda argentina. Apesar de contrato que lhe garantiria 4,6 milhões de m3 diários em 2008, a Argentina só tem recebido de 2,5 milhões a 3 milhões de m3/dia, segundo o próprio Linera. A indústria e até residências têm sofrido interrupções freqüentes no fornecimento de energia, e a tendência é a crise acentuar-se no inverno. Ocorre que também o Brasil está em um momento de aumento no consumo de gás e dificilmente poderá prescindir do insumo, especialmente no auge do período seco.

Linera condena o uso do termo "redução voluntária", mas reconheceu que não terá como atender a demanda adicional de gás que se cria no inverno. A idéia da Bolívia é uma espécie de triangulação em que o Brasil abre mão de parte do gás a que tem direito por contrato, somente no momento de pico da demanda, para aliviar a crise energética da Argentina. Segundo ele, o ano de 2008 é "crítico", mas o problema não deve se repetir mais adiante porque a produção boliviana de gás aumentará em até 3 milhões de m3/dia em outubro, além de outros 6 milhões a 7 milhões de m3 diários no início de 2009.

Parece cedo, no entanto, para dar tal garantia. "Temos um contrato (com a Argentina) pelo qual nos próximos quatro anos vai aumentando (o envio de gás) à medida que se fazem novos investimentos", observou Linera, em entrevista no Palácio do Itamaraty. Um dos principais investimentos é o Gasoduto do Nordeste da Argentina, que multiplicará a capacidade de transferência. "Temos que chegar a 27 milhões de m3/dia", completou.

A estratégia de La Paz coloca o Brasil em situação delicada com a Argentina: se não ceder, pode acabar sendo responsabilizado pelo agravamento da crise energética no seu principal parceiro do Mercosul; se ceder, pode ter problemas adicionais para recuperar os reservatórios e eliminar definitivamente os riscos de um apagão em 2009. As represas do Norte e do Nordeste ainda estão com menos de 35% da capacidade máxima de armazenamento, volume muito inferior ao do ano passado e pouco confortável para a operação futura do sistema elétrico. Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, os reservatórios estão apenas levemente acima da margem mínima de segurança.

Fontes ligadas à Petrobras demonstraram apreensão com o alerta do governo boliviano, mas ressaltaram que a entrada em operação do terminal de regaseificação de gás natural liqüefeito (GNL) de Pecém, no Ceará, deverá gerar algum alívio para o equilíbrio entre oferta e demanda de gás. O problema, apontaram fontes da estatal, é que a demanda mundial por GNL está muito elevada e, em um cenário pessimista, podem faltar navios-tanque para enviar rapidamente o produto ao Brasil. Hoje, Linera estará no Rio para conversas com o presidente da Petrobras, José Sérgio Gabrielli, e com a diretora de Gás e Energia da estatal, Graça Foster.

Usando um eufemismo para a nova negociação, Linera sugeriu um "acordo regional", uma "integração energética" entre os países para satisfazer as demandas de Brasil e Argentina. Disse esperar "diálogo de alto nível" entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Cristina Kirchner e Evo Morales no dia 23, em Buenos Aires, quando a triangulação deve ser definida.