Título: Gás, problema urgente para Argentina, Brasil e Bolívia
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2008, Opinião, p. A16

O governo da Bolívia sugeriu ao Brasil que ceda parte do gás contratado daquele país para abastecer a Argentina no inverno, período em que é grande o risco de repetição da severa crise de energia de 2007 ou mesmo um apagão generalizado no país vizinho. Após reunião da delegação boliviana chefiada pelo vice-presidente, Alvaro García Linera, com autoridades do governo brasileiro, ontem, em Brasília, os representantes de Evo Morales deixaram claro o tamanho do problema: a Bolívia não dispõe de gás suficiente para atender a demanda do Brasil e da Argentina ao mesmo tempo.

Linera garantiu o fornecimento, para o Brasil, não dos 31 milhões de metros cúbicos que representam a capacidade do gasoduto Brasil-Bolívia, mas de algo entre 27 milhões e 29 milhões de m3/dia que seria, segundo ele, a média histórica de fornecimento para o Brasil. Este é o 'imbróglio' que está colocado sobre a mesa dos três presidentes - Luiz Inácio Lula da Silva, Evo Morales e Cristina Kirchner - que se encontram dia 23 em Buenos Aires.

Lula, que no ano passado atendeu ao pedido do governo argentino de aumentar as exportações de energia para o vizinho, está, agora, diante de um dilema de bom tamanho: ajudar a evitar o agravamento da crise energética na Argentina em prejuízo de todo o planejamento energético brasileiro; ou arcar com o custo político e diplomático dos argentinos ficarem sem gás no inverno.

Pelo Acordo de Fornecimento de Gás firmado há uma década, o Brasil importa da Bolívia entre 28 milhões e 31 milhões de m3/dia. A preocupação do setor elétrico brasileiro é afastar completamente o risco de déficit no abastecimento de energia neste e no próximo ano. Para isso, conta com o acionamento das usinas térmicas movidas a gás para ajudar na recomposição dos reservatórios de hidrelétricas. Nas últimas semanas a ocorrência de chuvas praticamente eliminou os riscos de racionamento em 2008, mas é necessário, agora, encher as represas para evitar desabastecimento futuro. Apesar do aumento na intensidade das chuvas recentes, a situação no Brasil ainda está longe de um padrão de absoluto conforto. Em março de 2007 os reservatórios do Sul e Centro-Oeste estavam com 86% e hoje estão com 58%.

O planejamento do setor elétrico, portanto, indica que é preciso ligar as usinas térmicas de maio a outubro, período de estiagem que coincide com o inverno na Argentina. Se não há folga na oferta de gás para as térmicas, ceder uma parte do produto adquirido da Bolívia -- cerca de 2 a 3 milhões de m3/dia - para a Argentina comprometeria toda a estratégia do governo brasileiro para enfrentar 2009.

Este é mais um capítulo da crise do gás que começou em maio de 2006, quando o presidente da Bolívia, Evo Morales, nacionalizou e ocupou militarmente as reservas, refinarias, dutos e operações do setor. De lá para cá houve uma seqüência de eventos, com a elevação dos royalties pagos pelas empresas ao governo da Bolívia, a venda forçada das duas refinarias da Petrobras, maior investidora estrangeira naquele país, mudança na fórmula de cálculo do preço que remunera o gás do Gasbol e o reajuste dos preços do gás para Cuiabá, seguido da interrupção do fornecimento de 2,2 milhões de m3 para esse gasoduto, que é privado. Até então, não havia tido, porém, falha na oferta de gás como a que agora se avizinha.

Sem os devidos investimentos que aumentem substancialmente a oferta do gás boliviano, o episódio de agora pode ser apenas uma prévia do que vai acontecer quando entrar em operação o gasoduto do Nordeste da Argentina, recentemente licitado e que pretende entrar em operação a partir de 2010 para transportar 27 milhões de m3/dia de gás da Bolívia para as províncias argentinas de Salta, Formosa, Chaco, Missiones, Corrientes e Entre Ríos. O governo de Evo Morales garante que o problema da falta de gás para atender Brasil e Argentina é restrito a este ano e que o aumento da produção do insumo a partir de 2009 será suficiente para abastecer ambos os países. Mas isso, hoje, não é certo. A Bolívia afastou investidores pela forma com que fez a nacionalização e já quando assinou o contrato que triplica a oferta para a Argentina sabia que não teria esse gás. E a Argentina enfrenta um déficit de energia porque congelou preços, promoveu estatização parcial do setor e desestimulou investimentos. Seu problema de energia não é sazonal.