Título: Securitização: uma reflexão à luz da crise americana
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/02/2008, Legislação & Tributos, p. E2

A crise americana das hipotecas de alto risco (subprime) recomenda uma reflexão sobre nossa securitização imobiliária, desenhada pela Lei nº 9.514, de 1997, à luz do modelo americano. A securitização, como se sabe, é caracterizada pela emissão de títulos lastreados em créditos. O produto da cobrança dos créditos é destinado ao resgate dos títulos. É fundamental, portanto, que haja lastro suficiente e adequado ao resgate dos títulos.

No caso americano, o que se noticia é que no lastro havia créditos cuja liquidez era incompatível com as necessidades de resgate, o que teria comprometido a solvência dos títulos.

O problema é de inconsistência do lastro decorrente de excessiva liberalidade na concessão de crédito, e parece não ter similar no nosso mercado. Outros fatores determinantes da consistência, entretanto, merecem atenção, entre eles a natureza jurídica do lastro.

Afinal, é o lastro que garante o resgate dos títulos e esse lastro é formado por créditos imobiliários, expressão cujo significado não é enunciado de maneira explícita pela Lei nº 9.514, de 1997.

Com efeito, a expressão crédito imobiliário indica, naturalmente, o crédito vinculado a direito real imobiliário, que prende um imóvel ao crédito para garantir o pagamento, de modo que pode ser considerado crédito imobiliário um empréstimo sem finalidade específica, mas desde que tenha garantia hipotecária ou fiduciária, por exemplo. Diferente seria uma interpretação restritiva, pela qual só seriam créditos imobiliários aqueles oriundos da comercialização de imóveis, pois na Lei nº 9.514 são freqüentes as expressões financiamento imobiliário, contratos de compra e venda de imóveis a prazo, arrendamento mercantil de imóveis, associadas à idéia da comercialização. E há ainda quem pense que o vínculo real não seria elemento essencial da qualificação, de modo que pode ser considerado crédito imobiliário o direito do locador oriundo de um contrato de locação de imóvel ou o do promitente vendedor de imóvel, ainda que não se estabeleça vínculo real em favor do investidor.

Ora, o fato de a qualificação do lastro ser fator de segurança do mercado associa a expressão crédito imobiliário à efetiva existência de imóveis vinculados ao crédito, para assegurar o resgate dos títulos.

-------------------------------------------------------------------------------- Ao optar por um título lastreado em crédito imobiliário, o investidor acredita que por trás dele haja um imóvel --------------------------------------------------------------------------------

A Lei nº 9.514 sinaliza neste sentido: determina que seja individualizado o imóvel a que esteja vinculado o crédito imobiliário (artigo 8°, inciso I), bem como manda seja averbado o termo de securitização na matrícula do imóvel, quando adotado o regime fiduciário (parágrafo único do artigo 10), e, ainda, trata da constituição de outras garantias, induzindo a crer que há uma garantia imobiliária natural.

Efetivamente, o que distingue a securitização de créditos em geral, não imobiliários, da securitização de créditos imobiliários é a inexistência ou a existência de bens garantindo o crédito securitizado.

Presumivelmente, ao optar por um título lastreado em crédito imobiliário, o investidor acredita que por trás dele haja um imóvel garantindo o resgate do título.

Se não houver essa vinculação, não haverá diferença alguma entre a securitização de créditos imobiliários e a securitização de créditos não imobiliários (cartões de crédito, por exemplo). E, se fosse assim, não haveria razão alguma para existir uma lei específica para a securitização do crédito imobiliário.

Por isso, apesar de ser admissível a securitização de créditos que, embora possam ser considerados, genericamente, imobiliários, não tenham vínculo real com os imóveis a que se referem, como são os casos de aluguéis e das promessas de compra e venda, os riscos da emissão devem ser protegidos por garantia real imobiliária, como acontece, por exemplo, nas operações "built to suit" garantidas por propriedade fiduciária.

Importa que os créditos estejam vinculados a imóveis que, em caso de inadimplemento dos devedores, sejam convertidos em dinheiro para resgatar os títulos colocados no mercado.

Afinal, a consistência do lastro é fator de credibilidade da securitização.

Melhim Namem Chalhub é advogado, professor e autor dos livros "Trust - Perspectivas do Direito Contemporâneo na Transmissão da Propriedade para Administração de Investimentos e Garantia", "Negócio Fiduciário" e "Da Incorporação Imobiliária" pela editora Renovar e "Direitos Reais" pela editora Forense

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