Título: O furacão financeiro
Autor: Soros, George
Fonte: Valor Econômico, 23/01/2008, Opinião, p. A11

A atual crise financeira, deflagrada pelo estouro da bolha no mercado habitacional americano, também assinala o fim de uma era de expansão de crédito baseada no dólar como moeda de reserva internacional. Trata-se de um furacão muito maior do que qualquer outro ocorrido desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Para compreender o que está acontecendo, precisamos de um novo paradigma. Esse paradigma está disponível na teoria da reflexividade, que originalmente propus, vinte anos atrás, em meu livro "The Alchemy of Finance" (A alquimia financeira). A teoria sustenta que os mercados financeiros não tendem ao equilíbrio. Visões tendenciosas e errôneas entre os participantes no mercado introduzem incerteza e imprevisibilidade não apenas nos preços de mercado, mas também nos fundamentos que esses preços supostamente deveriam refletir. Deixados a seu bel-prazer, os mercados tendem a extremos de euforia e desespero.

Com efeito, devido a sua instabilidade potencial, os mercados financeiros não são deixados a seu bel-prazer; ficam sob a responsabilidade de autoridades cuja missão é manter os excessos dentro de limites. Mas as autoridades também são humanas e sujeitas a visões tendenciosas e errôneas. E a interação entre os mercados financeiros e as autoridades financeiras também é reflexiva.

Processos de expansão acelerada seguida de colapso brusco são geralmente centrados em crédito, e sempre envolvem um preconceito ou premissa errônea - geralmente a não percepção da existência de um nexo reflexivo, circular, entre a disposição para conceder empréstimos e o valor das garantias. O recente boom no mercado habitacional americano é um exemplo disso.

Mas o atual superboom é um caso mais complicado. Sempre que houve problemas com a expansão do crédito, as autoridades financeiras intervieram, injetando liqüidez e encontrando outras maneiras de estimular a economia. Isso criou um sistema de incentivos assimétricos - também denominado "risco moral" - que estimulou uma expansão cada vez maior do crédito. O sistema foi tão bem-sucedido que as pessoas passaram a acreditar no que o ex-presidente Ronald Reagan denominou "a mágica do mercado" - e que eu denomino fundamentalismo de mercado.

Os fundamentalistas acreditam que os mercados tendem para o equilíbrio e que o interesse comum é melhor atendido permitindo que cada participante busque seu interesse próprio. Essa é, evidentemente, uma noção errônea, porque foi a intervenção das autoridades que impediu o colapso dos mercados financeiros, e não os próprios mercados. Apesar disso, o fundamentalismo de mercado emergiu como a ideologia dominante na década de 1980, quando os mercados financeiros começaram a ficar globalizados e os EUA começaram a acumular seu déficit em conta corrente. A partir da década de 1980, as regulamentações foram progressivamente relaxadas, até que praticamente desapareceram.

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A globalização permitiu que os EUA absorvessem a poupança do resto do mundo e consumissem mais do que produziam, tendo seu déficit em conta corrente atingido a marca de 6,2% do Produto Nacional Bruto (PNB) em 2006. Os mercados financeiros incentivaram os consumidores a tomar empréstimos mediante a adoção de instrumentos cada vez mais sofisticados e termos mais generosos. As autoridades admitiram e estimularam esse processo, ao intervir, sempre que o sistema financeiro mundial esteve em risco.

O superboom escapou de controle quando os novos produtos tornaram-se tão complicados que as autoridades já não eram capazes de calcular os riscos e começaram a basear-se nos métodos de gerenciamento de riscos dos próprios bancos. Da mesma forma, as agências de classificação de crédito passaram a confiar nas informações apresentadas pelos criadores dos produtos sintéticos. Foi uma absurda abdicação de responsabilidades.

Tudo o que poderia dar errado, deu. O que começou com o financiamento habitacional para tomadores com histórico de crédito inseguro alastrou-se para todas as obrigações de dívida colateralizadas (CDO, na sigla em inglês), colocou em risco companhias seguradoras e resseguradoras de bônus municipais e de hipotecas, e ameaçou desmoronar o multitrilionário (em dólares) mercado de swaps de risco de crédito. As alocações de bancos de investimento em aquisições alavancadas converteram-se em passivos. Os fundos de hedge tiveram de abandonar suas posições. Ocorreu, então, uma paralisia no mercado de crédito de curto prazo garantido por ativos e os veículos de investimentos especiais criados pelos bancos para tirar as hipotecas de seus balanços patrimoniais deixaram de conseguir financiamento externo.

O choque final aconteceu quando o mercado de empréstimos interbancários - o coração do sistema financeiro -, foi desestabilizado porque os bancos tiveram de proteger seus recursos e não podiam confiar em seus contrapartes. Os bancos centrais tiveram de injetar um montante sem precedentes de dinheiro e oferecer crédito para dar liqüidez a uma série sem precedentes de títulos a uma gama mais ampla de instituições do que nunca. Isso tornou a crise mais aguda do que qualquer outra desde a Segunda Guerra Mundial.

A expansão do crédito precisa agora ser seguida por um período de contração, porque alguns dos novos instrumentos e práticas creditícias são irresponsáveis e insustentáveis. Além disso, a capacidade das autoridades financeiras de estimular a economia é limitada pela inapetência do resto do mundo a acumular reservas adicionais em dólares.

Até recentemente, os investidores apostavam em que o Fed (Federal Reserve, banco central dos EUA) faria todo o necessário para evitar uma recessão, porque isso foi o que o Fed fez em ocasiões anteriores. Agora, eles precisam admitir que o Fed pode não estar em condições de fazê-lo. Em vista do encarecimento do petróleo, dos alimentos e de outras commodities, e da valorização mais rápida do yuan, o Fed também precisa preocupar-se com a inflação. Se os juros forem cortados para abaixo de certo ponto, o dólar ficará sujeito a renovadas pressões e os bônus de longo prazo passariam a proporcionar um rendimento mais alto. É impossível determinar qual seria esse ponto, mas quando for atingido, a capacidade de o Fed estimular a economia terá chegado ao fim.

Embora uma recessão no mundo desenvolvido seja agora mais ou menos inevitável, China, Índia e alguns dos países produtores de petróleo estão numa contra-tendência bastante vigorosa. Em conseqüência disso, é menos provável que a atual crise financeira provoque uma recessão mundial do que um realinhamento radical da economia mundial, com um declínio relativo dos EUA e a ascensão da China e de outros países em desenvolvimento. O perigo é que as tensões políticas resultantes, entre elas as de um protecionismo americano, possam desestabilizar a economia mundial e mergulhar o mundo em uma recessão - ou algo pior.

George Soros, financista e filantropo, é presidente do Soros Fund Management e do Open Society Institute. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org