Título: Região deve continuar sob tutela da ONU e da UE
Autor: Kole, William J.
Fonte: Valor Econômico, 19/02/2008, Internacional, p. A13

A independência de Kosovo, reconhecida ontem pelos EUA e por países europeus, como França e Reino Unido, tende a se consolidar, mas o processo é arriscado e não estará livre de percalços.

Kosovo é (ou era) uma província autônoma da Sérvia, país que se originou da fragmentação da antiga Iugoslávia. Mas, desde 1999, a região é administrada pela ONU.

A Constituição de quase todos os países (como o Brasil) prevê que a unidade territorial é indissolúvel. Ou seja, para a Sérvia a declaração de independência é ilegal. A própria ONU aprovou resolução que diz que Kosovo pertence à Sérvia. A identidade nacional sérvia está ligada a batalhas travadas em Kosovo contra os turcos no século XIV. A região nunca foi independente.

Mas os kosovares de etnia albanesa (90% da população, contra só 7% de sérvios) foram vítimas de violenta perseguição pelo ditador sérvio Slobodan Milosevic, quando o movimento separatista começou, no meados dos anos 90. Logo, tornou-se antipático negar-lhes o direito à autodeterminação.

Essa questão implícita, de qual o alcance da soberania nacional, é uma das mais atuais no pós-Guerra Fria. O direito internacional é vago, e a resposta tem sido mais política. Os russos reprimem o movimento separatista na Tchetchênia, assim como fazem os turcos no Curdistão e os chineses no Tibete. E nem EUA nem União Européia, que apoiaram a independência de Kosovo, se manifestam pela independência dessas regiões. O motivo é sempre político: não melindrar um país aliado (a Turquia), não provocar um país importante demais (a China) ou silenciar diante da repressão a um inimigo comum (a Rússia combate extremistas islâmicos tchetchenos).

No caso de Kosovo, EUA e UE estimularam a independência. Diplomatas europeus disseram ontem que a situação de Kosovo é diferente, única. Não é. Tanto que vários países europeus não reconhe-ceram a independência, seja por sobre a sua legalidade ou por temerem movimentos separatistas, como a Espanha com os bascos.

Quais motivos moveram então EUA e UE? Entre outros, lembrar a uma Rússia cada vez mais assertiva a limitação de seu real poderio. Moscou é o principal aliado da Sérvia. O Reino Unido, cuja relação com a Rússia está muito deteriorada, foi um dos primeiros países a reconhecer Kosovo. A UE deve ainda absorver os países balcânicos, sua última fronteira natural, nas próximas décadas. Isso pode forçar a Sérvia a passar da esfera de influência russa para a ocidental.

Quais são os possíveis desdobramentos agora? A Sérvia pediu à ONU que anule a declaração de independência. É improvável que o Conselho de Segurança o faça, já que EUA e UE apóiam a independência. Vários países, inclusive o Brasil, aguardam uma decisão da ONU para reconhecer o novo país. É igualmente improvável que o CS reconheça essa independência, pois a Rússia vetaria tal resolução.

Assim, o cenário mais provável é que a independência de Kosovo vá se consolidando de fato até ser reconhecida de direito pelo mundo.

Sem alternativa legal, à Sérvia caberá aceitar ou reprimir a independência. Hoje o governo sérvio parece inclinado a não recorrer à força, até porque a Otan mantém 17 mil soldados na província. Mas o país está dividido, o que ficou claro na recente reeleição por margem estreitíssima do presidente pró-europeu Boris Tadic. Um futuro governo nacionalista pode ser tentado a intervir militarmente.

A situação da minoria sérvia em Kosovo pode ser determinante nos próximos meses. Ontem kosovares sérvios protestaram contra a independência. Se houver episódios de violência contra eles, o governo sérvio poderá ser forçado defendê-los. Teria um pretexto para isso. Talvez não evite a independência, mas poderia abocanhar um pedaço do já exíguo território kosovar.

Outra questão é até que ponto o governo sérvio conseguirá controlar a ação autônoma de grupos ultranacionalistas, que parecem ainda estar infiltrados no serviço secreto e nas Forças Armadas da Sérvia. Já houve três explosões contra bases de organizações internacionais na área sérvia de Kosovo.

Aprisionado entre uma Sérvia hostil e a Albânia, um dos países mais pobres da Europa e com forte penetração do crime organizado, Kosovo tende a permanecer por anos, talvez décadas, como um protetorado da ONU e da UE.