Título: Suspeita de grilagem deixa sob litígio 300 mil hectares no cerrado da Bahia
Autor: Cruz, Patrick; Salgado, Raquel
Fonte: Valor Econômico, 19/02/2008, Agronegócios, p. B11

Uma querela jurídica deixou sob litígio uma área superior a 300 mil hectares e pôs em alerta quase uma centena de agricultores do pólo de produção de grãos do oeste baiano. Segundo denúncia do Ministério Público, os registros das propriedades são irregulares. A área corresponde a mais de um terço da área de soja da região, a principal cultural do local, e a cerca de 20% de toda a área de plantio no cerrado do oeste do Estado.

A origem do problema teria ocorrido na documentação utilizada para a emissão da matrícula, documento que é um histórico do imóvel e no qual constam informações como nomes dos antigos proprietários, data de seu primeiro registro e se há ônus com hipotecas, entre outros dados. De acordo com a denúncia, a matrícula-mãe, da qual se originaram as mais de 80 matrículas que apresentam problemas, teria sido emitida a partir de um falso atestado de óbito.

Como explica o advogado Felisberto Córdova, do escritório Felisberto Córdova Advogados, que defende os atuais proprietários da área, casos como esse têm o seguinte perfil: no momento do inventário de um terreno, surgem pessoas requerendo a área por meio de um atestado de óbito do suposto dono do terreno. A documentação, se aceita, possibilita a divisão da terra para posterior venda em lotes menores. Esses novos lotes recebem cada um seu próprio número de matrícula. Se os papéis não forem analisados desde a origem, não há como detectar irregularidade.

"É um caso de grilagem de terra clássico, e uma grilagem 'oficial', já que toda a documentação está correta", afirma o advogado. "E isso muitas vezes acaba prejudicando adquirentes de boa-fé, que sequer sabem que estão comprando uma terra que tem como base uma matrícula que não é válida", diz ele. A orientação de Córdova é para que seus clientes busquem regularização da área alegando usucapião.

Ocupada especialmente por agricultores originários do Sul do país, então atraídos pelas terras férteis do oeste baiano - e baratas, na comparação com outros pólos de produção de grãos -, a região ganhou peso no agronegócio brasileiro em meados da década passada, mas a gênese desse movimento ocorreu há mais de 20 anos. A pendência tem como epicentro as fazendas da região de Formosa do Rio Preto, a mil quilômetros de Salvador.

O atestado de óbito tido como irregular é de Suzano Ribeiro de Sousa, que teria sido lavrado em 1977 na comarca de Corrente, no Piauí. "Mas os problemas são muito antigos. Há informações sobre o terreno ainda emitidas em réis", diz Córdova. O antigo real - moeda brasileira que tinha "réis" como plural - circulou até 1942, quando foi substituído pelo cruzeiro.

A declaração de nulidade do atestado de óbito - que invalida a matrícula-mãe do terreno e, por conseqüência, todas as matrículas emitidas a partir dela, segundo Córdova - foi expedida pelo desembargador João Pinheiro, que acaba de deixar o cargo de corregedor-geral da Bahia. Segundo ele, a Corregedoria baiana apenas cumpriu um expediente que veio do Piauí, requerido pelo Ministério Público daquele Estado. Esse seria o segundo atestado de óbito da mesma pessoa, segundo Pinheiro.

O desembargador acredita, contudo, que a nulidade do óbito e o cancelamento das matrículas não alteram a posse nem a propriedade das terras. "O cancelamento não significa que o contrato de compra e venda não é válido", diz. "Acredito que ninguém de boa-fé será prejudicado".

Sérgio Pitt, vice-presidente da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), diz que a entidade tem dado suporte jurídico para os mais de 80 produtores da região, onde predominam o cultivo de soja, algodão e milho. "Há pessoas que compraram suas terras há mais de 20 anos, de terceiros, e que não têm a ver com toda essa história", afirma.