Título: Desaceleração nos EUA trará problemas ao Brasil, diz Dilma
Autor: Safatle, Claudia; Romero, Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 24/01/2008, Brasil, p. A3

Mesmo admitindo não saber a dimensão da crise externa que se avizinha, a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, acredita que a desaceleração da economia americana acarretará "problemas" ao Brasil. Ela assegura, no entanto, que o país nunca esteve tão preparado para enfrentar uma turbulência como agora. Nesta entrevista ao Valor, Dilma diz que o governo não tomará medidas antes de saber o tamanho da crise iniciada nos Estados Unidos, mas não se furtará a fazê-lo.

"O governo já demonstrou que é capaz de tomar todas as atitudes necessárias para preservar a estabilidade e as condições de crescimento do país", sustenta a ministra. Revelando sua face política, Dilma diz que o Brasil tem hoje uma credibilidade que não foi construída apenas pelo governo Lula. "Obviamente, ninguém pode ser cego a ponto de não achar que outros governos contribuíram, principalmente o anterior."

Crítica freqüente da política monetária conduzida pelo Banco Central no primeiro mandato, Dilma, agora, avisa que "nenhum ministro está autorizado" a discuti-la. Confiante no andamento das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), a ministra afirma que esses investimentos diminuem o custo Brasil, um fardo, segundo ela, mais pesado para o setor privado ultimamente do que as taxas de juros.

Valor: A senhora não teme que dois eventos - a perda da CPMF e uma possível crise externa - abortem o PAC em seu segundo ano de implementação?

Dilma Rousseff: Ninguém sabe a extensão dessa crise nos EUA. É uma caixa-preta. É uma crise de crédito e ninguém sabe, entre os bancos de lá, quem está com o 'mico', quem não está. Não se sabe as conseqüências nem o tamanho disso. Na medida em que os bancos forem publicando seus balanços, teremos as revelações dos prejuízos. A próxima rodada de balanços será em abril. A reação é que todo mundo parou de emprestar no interbancário. Aí, temos um problema sério. Diante de crises desse tipo, mais ou menos sistêmicas, geralmente vemos duas atitudes: um posicionamento dos bancos centrais como emprestadores de última instância, algo que aparentemente, nessa crise, não é suficiente; e, agora, a ação de governo. Vimos isso com as medidas anunciadas pelo Bush. Essas são questões que, num mundo globalizado, temos que considerar. No entanto, concordo com o que diz o ministro Guido Mantega.

Valor: Em que sentido?

Dilma: Quando ele diz que temos uma situação, talvez, a mais protegida, dos últimos 30 anos, para enfrentar este momento de crise. Primeiro, por causa dos indicadores macroeconômicos, com os quais temos sido bastante cuidadosos. Temos estabilidade fiscal e monetária. E no que se refere aos próprios procedimentos que o governo tem tido em relação ao setor privado, além da credibilidade do Brasil, que não fomos só nós que construímos porque, obviamente, ninguém pode ser cego a ponto de não achar que outros governos contribuíram, principalmente o governo anterior, mas nós demos a essa credibilidade uma solidez muito grande. Respeitando contratos, cumprindo promessas, estipulando, da forma mais transparente possível, normas competitivas e tendo uma parceria efetiva com o setor privado. O país está crescendo de forma significativa pelo investimento, pela formação bruta de capital fixo, que está crescendo na frente do PIB. Temos hoje uma estrutura de crédito muito mais eficiente. E há uma expectativa muito favorável do setor empresarial. Nesse quadro, temos o PAC, que pode funcionar como uma vacina.

Valor: De que maneira?

Dilma: O PAC é duplamente virtuoso porque elimina gargalos da economia, quebra obstáculos e barreiras que a infra-estrutura do país impunha aos demais segmentos e à eficiência, um risco quantificado (o custo Brasil) que, nos últimos tempos, ficou mais pesado que o custo financeiro. Ele tem uma característica muito dinâmica.

Valor: Como gerador de demanda?

Dilma: É, tanto no setor de serviços quanto no industrial fornecedor de equipamentos, de máquinas, na oferta de insumos e na contratação de mão-de-obra especializada. É um portfólio de projetos que exerce sobre a iniciativa privada um efeito muito bom. Em última instância, o PAC é investimento privado. Mostramos no último balanço o grau de demanda por obras. O governo não é empreiteiro nem fornecedor de equipamentos nem de serviços. O programa é um fator de estímulo ao setor privado.

Valor: Diante dos riscos de um agravamento da crise externa, o governo está preparado para tomar medidas amargas, fiscais e monetárias, se a situação assim o exigir?

Dilma: Espero que não seja necessário. Acho que hoje temos uma situação que nos blinda bastante. Essas questões de se isso ou aquilo acontecer são muito difíceis de responder porque não têm boa resposta. Se eu disser que o governo está preparado, estou aceitando que tem uma crise ali e criando uma instabilidade onde não precisa haver. Hoje, nossa posição em relação a essa crise é mais tranqüila. O governo já demonstrou que é capaz de tomar todas as atitudes necessárias para preservar a estabilidade e as condições de crescimento do país. Já demonstramos isso nos cinco anos de governo. Em que pese não sermos uma ilha, não há hipótese de a gente supor que poderia haver uma situação melhor do que a que temos para enfrentar esse processo da economia internacional, que é uma crise de crédito. É óbvio que, se houver desaceleração da economia americana, mais isso ou aquilo, teremos problemas. O que quero dizer é que esses problemas serão mitigados porque temos hoje robustez. E um dos fatores disso é o PAC, que cria uma dinâmica interna virtuosa de crescimento sustentável. Agora, as autoridades da área têm que ficar atentas, observando, sem nenhuma atitude de pânico, até porque acho que não podemos a cada oscilação da bolsa criar um caos. Na segunda-feira a bolsa caiu, na terça-feira subiu.

Valor: Por causa da queda dos juros americanos e da Petrobras.

Dilma: Isso é uma demonstração do que estou dizendo. O que segura a nossa vida é o pré-sal (potencial da faixa ultra-profunda ao longo da costa brasileira) que a Petrobras descobriu em mar pátrio. É o crescimento do país que nos protege.

Valor: Com que cenário a senhora trabalha? O Banco Central acha que mesmo com recessão americana é possível crescer 4,5% este ano. Guido Mantega acredita em 5%.

Dilma: O que é a mesma coisa, não é? Não temos porque achar que a situação vá piorar. Nossa aposta não é essa. No passado tínhamos crise cambial, não tínhamos reservas cambiais. Hoje, a situação mudou de forma substantiva e o governo trabalha com o cenário que construiu.

Valor: Se o Copom mantiver os juros em 11,25% por muito tempo não vai prejudicar o crescimento?

Dilma: Posso falar uma coisa? Nenhum ministro do governo está autorizado a ficar discutindo a política do BC. A política do BC tem que ser respeitada.

Valor: Esse ambiente de risco externo, além de tensões na área energética, não pode, por si só, adiar decisões de investimentos privados?

Dilma: Hoje, os profissionais da área de energia entendem perfeitamente a situação, que é a seguinte: vivemos numa conjuntura que mostra uma situação estrutural. O sistema elétrico brasileiro é hidrotérmico - 80% hídrico e 20% térmico. As usinas térmicas não são um apêndice. São parte estruturante do sistema elétrico brasileiro, funcionam como os reservatórios. Permitem que a gente assegure o estoque de água para ter garantia de energia. No sistema hidrotérmico, conseguimos a combinação ótima entre o fato de a água ser gratuita. Quando tem muita água, usa-se a água. Quando tem pouca, paga-se por ela, usando gás, carvão. As térmicas vieram para ficar. Achar que o despacho dessas usinas no Brasil é indício de crise é uma tolice. Vamos discutir a oferta de gás vis-à-vis as condições hidrológicas de afluência e armazenamento. Houve, em relação a 2001, uma mudança substantiva.

Valor: Qual?

Dilma: Naquela época, havia necessidade de complementação térmica mas não havia térmica disponível. Tanto que o governo teve que contratar usinas de diesel. Hoje há um processo de entrada do gás pesado na matriz energética brasileira, há o aumento da interligação do sistema e algumas coisas foram providenciadas e não hoje, porque o setor elétrico tem seu tempo de maturação, para aumentar a produção de gás natural. O Plangás significa ampliar a oferta de gás em 24 milhões de metros cúbicos/dia este ano, levando o total da produção de gás no Sudeste para 40 milhões de m3/dia; e ampliar até 2010 a oferta de gás natural em mais 39 milhões m3, levando a oferta de gás no Brasil a 55 milhões m3/dia; e concluir os gasodutos necessários. Em fevereiro fica pronto o gasoduto Cabiúnas(RJ)-Vitória (ES). Em julho, o de Pecém (CE). O da Baía de Guanabara, em setembro de 2008. O presidente Lula não se posicionou sobre esse assunto gratuitamente.

Valor: Por quê?

-------------------------------------------------------------------------------- Nenhum ministro do governo está autorizado a discutir a política do Banco Central" --------------------------------------------------------------------------------

Dilma: Quando ele disse que a prioridade do gás é gerar energia térmica, sinalizou e encerrou uma conversa que é perigosa - a de que termelétrica é o demônio, que quando ela opera é porque estamos em crise. O presidente mostrou que o governo reconhece claramente qual o papel que as termelétricas ocupam na geração de energia. Isso, somado a uma operação cuidadosa feita pelo setor elétrico, pode nos dar a garantia de que temos certeza de que em 2008 não haverá racionamento. E estamos muito atentos, porque esse é o papel do governo, sobre as condições de abastecimento em 2009 e para tomar as providências para ampliar a oferta de gás quando for necessário. Acho importantíssimo destacar, ainda, que não conheço empresa privada no mundo que queira receber gás além do que está contratado, nem acho que seja uma prática seja correta.

Valor: Mas isso não foi estimulado pela Petrobras, que queria vender gás para as indústrias em vez de fornecer para as usinas térmicas?

Dilma: Seja o que for, daqui para a frente temos que disciplinar e não podemos fazer isso a partir de uma compreensão errada do que representa o gás no Brasil. É um combustível nobre que tem que ter prioridade e a grande prioridade é o uso industrial. Ele queima precisamente e melhora a produtividade da indústria. Temos que perceber que ele ou é importado a determinados preços ou é limitado ao que acharmos no Brasil. Não cai do céu! Quando não tivermos água, que é o único combustível gratuito, temos que pagar o combustível. Nossa vantagem é que podemos combinar os dois e vamos, portanto, sempre minimizar o preço da energia. Ao contrário do que estão pensando, não é possível falar que o gás aumente o preço da energia. No setor elétrico há sempre uma duplicidade que é a segurança do abastecimento e a modicidade tarifária. Quando as segurança é comprometida, a modicidade tarifária explode. É o custo do déficit. Aí, a lógica do despacho é primeiro a hídrica e só no fim, despacha a térmica.

Valor: Se tiver que despachar gás agora, não terá que ser feito racionamento na indústria?

Dilma: Todo mundo pode usar combustíveis alternativos. Acredito que, atualmente, estamos numa situação extremamente estável e não há risco de racionamento no horizonte. Estamos tomando todas as providências para que esta situação de relativa falta de chuva seja estabilizada pelas termelétricas e estamos conseguindo. Os reservatórios não caíram drasticamente. No Nordeste aumentaram nos últimos dias.

Valor: O foco de preocupação é 2009?

Dilma: Vamos passar com tranqüilidade por 2009. Lembre-se de que chega ao Brasil em julho o gás de Pecém (navio de gás liquefeito) e, em setembro, o da Baía de Guanabara. Um é de 6 milhões e o outro dá 14 milhões de metros cúbicos. Todo o fornecimento do GasBol dá 30 milhões de m3. Uma térmica em ciclo combinado de 500 MW gasta 2 milhões e 200 mil m3 de gás. Além disso, temos condições de fazer o manejo do gás com o princípio da prioridade das térmicas. O que o governo externa, ao fazer isso, é que ele está claramente consciente da situação e posicionado sem nenhum vacilo. Não existe hoje a menor possibilidade de não sabermos o que está acontecendo. Monitoramos semanalmente o setor e o Comitê de Monitoramento faz reuniões sistemáticas com Aneel, ONS, Petrobras, ANP, ANA. O setor elétrico amadureceu. Ninguém ficou esperando ter chuva. Temos um a plataforma de térmicas e vamos tratar delas. Vamos contratar uma reserva de biomassa, que é a segunda alternativa renovável que o Brasil vai encarar. A primeira é hidrelétrica.

Valor: Mas no caso da biomassa não há problema de preço alto?

Dilma: Houve expectativa de preço muito mais alto do que o razoável, mas hoje as expectativas estão mais realistas, até porque não se contrata premido pelas circunstâncias. Contrata-se por 15 anos e esses contratos têm que estar claramente refletidos num determinado preço, como foi o caso da usina de Santo Antonio, que é um marco. Vai ter leilão específico de biomassa para entrega em 2009 e 2010.

Valor: A senhora acha que Jerson Kelmann, diretor-presidente da Aneel, se precipitou?

Dilma: O Kelmann deu a posição dele, que não é a minha, mas a gente respeita. A resposta dele à pergunta de que não é provável ter apagão de energia, mas não é impossível, é a resposta que a gente deve evitar. O problema é que as perguntas de vocês em alguns momentos são muito difíceis. Imagino que o doutor Kelmann deve ter ficado em situação difícil, mas ele é um homem muito sério.

Valor: Como o governo está vendo a fusão da Oi com a BrT?

Dilma: Não vamos antecipar os acontecimentos.

Valor: Mas o governo não tem que editar um decreto permitindo a fusão?

Dilma: Não temos nenhum decreto na pauta nem sendo gestado.

Valor: Mas não tem que ter?

Dilma: Tem que ter como? Para quem? Com o quê? Vamos ver o que acontece e, na hora que acontecer, vamos nos posicionar.

Valor: O governo poderia ficar com uma "golden share" da nova empresa?

Dilma: Não cogitamos isso. Não cogitamos nada, ainda. Queremos ver no que vai dar, qual é o caminho que isso vai percorrer. Quando os sócios tiverem se posicionado e tiver claramente delineado qual é a modelagem existente, ao ser solicitado e estando claro, o governo tomará uma posição. Não estando nada claro, o governo mantém silêncio absoluto sobre a questão. Não tenho opinião pessoal nesse caso e mesmo quando tenho, depende de o governo me autorizar.

Valor: E quanto à compra da anglo-suíça Xstrata pela Vale?

Dilma: O governo vai acompanhar esse assunto com atenção.

Valor: O presidente Lula já mencionou mais de uma vez o desejo do governo de que a Vale invista em siderurgia. Essa negociação com a Xstrata não o desagrada?

Dilma: O presidente se manifestou no sentido, em que pese termos excelente relação com toda a diretoria da Vale e em especial com o Roger Agnelli, presidente da empresa, de que qualquer empresa de minério tem que ter cuidado porque o minério é algo que você pega, carrega e exporta. O presidente tem proposto e pleiteado a discussão de agregação de valor dentro do território nacional, com investimento local. Pode ser em parceria da Vale com outra empresa, qualquer empresa siderúrgica, notadamente no Pará, porque é de lá que está sendo extraído o minério. E tem o compromisso no Ceará. A Vale tem sido bastante receptiva, mas não manifestou ainda qualquer posição conclusiva.

Valor: Mas ela acabou optando por instalar uma siderúrgica em Vitória (ES).

Dilma: O que também é muito bom. A do Pará é um investimento estabilizador porque é de lá que saem os minérios e no passado já houve suficientemente atrito com o governador nesse sentido. Esse é o pleito do governo. Eu mesma falei com o pessoal da Vale da importância do investimento na agregação de valor dentro do país.