Título: Foco é ampliação da capacidade, afirma presidente do BNDES
Autor: Neumann, Denise
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2008, Brasil, p. A4

Julio Bittencourt / Valor Luciano Coutinho: "Economia brasileira tem robustez especial e fronteiras de crescimento que precisam ser exploradas" Os recursos para bancar um aumento de 23% no orçamento do BNDES em 2008 ainda não estão totalmente assegurados, mas o presidente da instituição, Luciano Coutinho, garante que o setor privado terá "pelo menos" R$ 80 bilhões à disposição este ano para manter o atual ciclo de investimentos. Dos R$ 30 bilhões que faltavam, Coutinho assegurou metade com o Tesouro, dos quais R$ 12 bilhões virão de um empréstimo cambial que terá como garantia a carteira do banco em moeda estrangeira.

Otimista, Coutinho diz que o Brasil pode crescer 6% este ano se o cenário externo for de desaceleração. Se os Estados Unidos caminharem para uma recessão, o país terá uma alta de 4% no Produto Interno Bruto (PIB). Sua aposta está ancorada na demanda já protocolada no banco - superior a R$ 90 bilhões - e tem como sustentação uma dupla combinação de oferta e demanda. O setor bancário brasileiro, ao contrário do mundial, está líquido e capaz de emprestar recursos e o setor privado, pouco alavancado e muito rentável, está em estratégia de investimento. Na outra ponta, o mesmo setor bancário tem um consumidor também pouco endividado e diante de nascente ciclo imobiliário. "Temos uma combinação especial que permite à economia brasileira autonomia para crescer mesmo em um contexto internacional desfavorável", diz o presidente do BNDES.

Ele acrescenta a esse cenário uma gama de setores nascentes, como etanol, petróleo e gás, e toda a cadeia da construção civil, impulsionada pelo ciclo imobiliário. Oferta, diz ele, não será um entrave ao crescimento, pois o BNDES e todo o governo, por meio da nova política industrial, estão atentos para "gaps" entre oferta e demanda. "O foco, agora, "é formação de capacidade industrial, PAC e inovação", explica. Essa é uma das razões para que o banco tenha concordado em adiar, para depois do segundo leilão de usinas do rio Madeira, a venda de sua participação na Brasiliana.

Para garantir que tudo se passe sem tropeços, Coutinho colocou em andamento um processo de formação de sucessores no banco. Afinal, em três anos, um terço de sua equipe se aposenta. Entre as mudanças, mérito será mais importante que antigüidade na lista de promoções. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida ao Valor em uma brecha de sua agenda, no fim de 2007.

Valor: O orçamento do BNDES para 2008 está fechado? E os recursos estão garantidos?

Luciano Coutinho: Fechamos metade do "gap" de R$ 30 bilhões no fim de 2007 e em janeiro e fevereiro vamos concluir os R$ 15 bilhões que faltam para ter o ano assegurado, com orçamento de R$ 80 bilhões. Metade está garantido. O Tesouro vai nos fazer um empréstimo cambial à sua melhor taxa externa porque a diferença entre essa taxa e a TJLP é pequena. Ele terá como garantia a carteira cambial do banco e esse empréstimo, de R$ 12 bilhões, mais a rolagem de outras dívidas do banco com o Tesouro totalizam R$ 15 bilhões.

Valor: Mas se apenas R$ 15 bilhões estão garantidos, isso significa que, por enquanto, está assegurado apenas um orçamento de R$ 65 bilhões, igual ao deste ano?

Coutinho: Não, não haverá problemas para que a outra parte seja complementada. Apenas as tratativas demandam um pouco mais de formalidade.

Valor: Os R$ 15 bilhões que faltam podem vir de onde?

Coutinho: Existem várias formas. Uma parte virá do FGTS, mas isso demanda uma negociação com o Conselho do FGTS, do Ministério do Trabalho, da Fazenda. O que estamos buscando sempre é a alternativa de custo mais baixo, que não crie dificuldades para a operação do BNDES que, em grande medida, é em TJLP. Então, qualquer funding que seja mais onerado que a TJLP cria uma dificuldade que precisa ser equacionada.

Valor: Vocês conseguirão ficar com os dividendos de 2007, que podem ser expressivos dado o lucro superior a R$ 7 bilhões até setembro?

Coutinho: Depende do desenho final da solução e depende, ainda, da disponibilidade fiscal que o Tesouro terá em 2008 posto que com o fim da CPMF não há um horizonte claro a respeito das necessidades de superávit primário por parte do Tesouro. Só depois de aprovada a nova proposta orçamentária, com eventuais ajustes de despesa, poderemos ter, com o Ministério da Fazenda, uma avaliação da necessidade de transferência de dividendos. É claro que a não transferência é positiva para o BNDES, mas nós compreendemos quando é necessário ajudar o Tesouro. E o Tesouro tem entendido, diante da relevância do ciclo privado de investimentos e do PAC, a importância do BNDES receber o funding necessário para que não se prejudique o crescimento da economia.

Valor: Mesmo sem a CPMF, o sr. acredita que terá os R$ 30 bilhões ?

Coutinho: Certamente, pois essa é uma determinação expressa do presidente da República, que tem uma resposta muito cooperativa no Ministério da Fazenda, principalmente do ministro Mantega.

Valor: O empréstimo cambial significa que o Tesouro vai usar reservas para repassar ao banco?

Coutinho: Não, nada a ver. Existe uma parte do FAT que é cambial e o Tesouro tem captação em moeda estrangeira, apenas é uma forma mais conveniente do Tesouro financiar o banco. Ao mesmo tempo, a diferença entre essa taxa e a TJLP será compensada por uma redução da remessa de dividendos do banco em uma escala que está sendo calculada.

Valor:

Coutinho: Eu ficaria muito feliz se a demanda fosse mais firme do que a que está em curso. Se isso acontecer e precisarmos de mais recursos, iremos complementá-los. Nos últimos 15 trimestres, o investimento tem liderado o crescimento do PIB com uma taxa média superior a 11%, enquanto o PIB tem variado entre 4% e 5%. Ele tem, portanto, crescido o dobro do PIB. É fundamental que esse ciclo continue porque é a criação de capacidade produtiva que previne a formação de pressões inflacionárias. Esta é uma demonstração clara de que a estratégia privada atual é de crescimento. Quando o setor privado sente insegurança, ele puxa o freio de mão do investimento e prefere subir margens ao invés de aumentar a oferta. Quando a estratégia predominante é de investir, isso produz uma reação competitiva dos concorrentes, todos investem, todos criam capacidade e isso é a chave para o crescimento com estabilidade de preços.

Valor: E o governo pretende privilegiar alguns setores e direcionar recursos para segmentos onde vocês percebam gargalos ou todo empresário que bater na porta do BNDES terá acesso aos recursos?

Coutinho: Nós temos, para 2008, as seguintes prioridades: suportar a ascensão dos investimentos do PAC em infra-estrutura porque são obviamente essenciais para o crescimento da economia e para remover as dúvidas quanto a oferta futura de energia, de logística; a segunda prioridade é a formação de capacidade industrial nova e a terceira é o impulso à inovação tecnológica. Claro que todas empresas ou projetos que se encaixem nessas três prioridades terão tratamento prioritário. O BNDES recebe demanda de investimento dos mais variados setores, desde empreendimentos imobiliários até outros, menos relevantes do ângulo de aumento da oferta. O banco atende à demanda, mas ele foi preparado para ser pró-ativo. No passado, havia um excesso de recursos do banco que foi direcionado para operações diversas, sem foco preciso. Agora, o foco é formação de capacidade industrial, PAC e inovação. Na indústria temos feito um acompanhamento setorial e estamos buscando identificar setores onde a demanda cresce firmemente e os planos de expansão da oferta, eventualmente, não estejam compatíveis com esse aumento.

Valor: Em que setores vocês já identificaram esse "gap"?

Coutinho: Em alguns. Uma área onde o investimento estava um pouco defasado, mas isso já foi corrigido, era a cadeia automobilística. Os preparativos para a política industrial foram um exercício de mobilização em várias cadeias. Uma das preocupações da política é o apoio ao investimento das empresas justamente olhando o balanço entre oferta e demanda.

Valor: Esse governo já teve uma política industrial. Por que uma nova? A outra fracassou?

Coutinho: A política do primeiro mandato teve um foco mais correto e dirigido para os setores intensivos em conhecimento e inovação. Esse foco precisa permanecer e ser reforçado, e permanecerá na fase dois da política industrial. Mas reconhecendo que estamos no início de um ciclo de crescimento e que é preciso dar amplo suporte às decisões privadas de acumulação de capital fixo, o escopo da política naturalmente se tornou mais amplo. Sem esquecer sua origem ela ganha maior amplitude e mais potência de maneira a ajudar a política macroeconômica. Essa que é a grande novidade: a sintonização da política de investimentos do país com a macroeconômica.

-------------------------------------------------------------------------------- Se a demanda for mais firme do que a que está em curso, iremos complementar os recursos necessários" --------------------------------------------------------------------------------

Valor: Mas inovação, dentro das empresas, não continua a ser mais discurso do que uma política efetiva? Quando se olham os indicadores de investimento nessa área, inclusive na carteira do BNDES, eles não passam de um traço...

Coutinho: Sim, é verdade, mas nós esperamos mudar essa realidade, ampliando os investimentos nas áreas intensivas em inovação.

Valor: A perspectiva de desaceleração americana - ou até de recessão - não pode frear o ânimo de investimentos no Brasil?

Coutinho: Não, e por um conjunto de razões. Mesmo que a crise seja mais forte nos Estados Unidos e na Europa - em função de um agravamento das condições de crédito - e esse fato possa repercutir sobre o comércio internacional, é importante lembrar que o comércio internacional tem contribuído negativamente para o crescimento do PIB brasileiro. Então, o efeito seria muito moderado sobre o Brasil, até porque China e Ásia tendem a continuar crescendo. E o Brasil tem três fatores de autonomia de crescimento que são muito robustos. Primeiro, o fato de que o sistema bancário brasileiro é muito saudável, capitalizado e habilitado a ampliar a oferta de crédito, contrariamente ao que acontece no mundo todo. O cenário brasileiro é exatamente o oposto e a oferta de crédito pode continuar crescendo a um ritmo muito acelerado ao longo de 2008, 2009, 2010. Do ponto de vista do setor privado brasileiro, temos o retrato de um setor muito desalavancado, com baixíssimo nível de endividamento, com rentabilidade muito expressiva, e com um processo ascendente de investimentos. Então, temos um setor privado demandante de crédito e um setor bancário e um mercado de capitais habilitados a ofertá-lo. Um terceiro fator é que o setor família no Brasil combina aumento persistente de renda e emprego e capacidade de endividamento. Há um ciclo de endividamento em curso. Nesta primeira etapa ele ficou muito claro na aquisição de duráveis, mas vai se tornando cada vez mais poderoso um ciclo de endividamento para a construção habitacional. Também aqui há capacidade de endividamento pelo lado da demanda e pelo lado da oferta. A conjugação destes três fatores cria uma combinação especial que permite à economia brasileira autonomia para crescer mesmo em um contexto internacional desfavorável.

Valor: Mas não vamos ter o setor exportador contra essa boa maré?

Coutinho: A demanda final no Brasil, de consumo e investimento, alavancada em boa parte por crédito mais renda - lucros ou massa de salários - tem crescido em torno a 6% nos últimos 18 meses. Por que o PIB brasileiro está entre 4,5% a 5%? Porque o setor externo tira cerca de 1,5 ponto do crescimento. Não há nenhuma razão para que a demanda doméstica deixe de crescer a 6%. O que pode acontecer é que, em uma crise, a contribuição negativa do setor externo pode ter um efeito um pouco mais negativo sobre o PIB, mas não tão substancial. Se você tiver uma situação externa muito negativa, a taxa de crescimento da economia brasileira cairia no máximo para 4%. Se a situação externa continuar razoável - se ocorrer apenas desaceleração americana e mundial - o país cresce 6% porque a demanda interna, a demanda por investimento, está em aceleração.

Valor: Muito longe dos 3% desenhados pelo Armínio Fraga...

Coutinho: Talvez ele não tenha considerado a robustez do crescimento do crédito e talvez ele tenha transplantado para o Brasil o efeito do "credit crunch" americano, que não acontecerá no caso brasileiro. No passado, sempre que os desenvolvidos sofriam um pequeno resfriado, caíamos em febre alta, tínhamos queda de crescimento ou até períodos de recessão forte. Hoje, a economia brasileira tem uma robustez especial e temos fronteiras novas de crescimento que precisam ser exploradas.

Valor: Quais são elas?

Coutinho: Uma delas é a do etanol. No contexto das mudanças climáticas, os biocombustíveis inevitavelmente ganharão um espaço no mercado global, já ganharam e continuarão ganhando um espaço relevante no mercado brasileiro com o motor flex. Outra área é a de petróleo e gás, onde os planos de investimento da Petrobras são muito robustos e não há nenhuma perspectiva de queda no preço do petróleo. Outra vem com o ciclo de investimentos imobiliários, pois em todas capitais e cidades de médio porte há um crescente número de lançamentos imobiliários, com efeito sobre várias cadeias de materiais de construção. Também há investimentos em mineração e metais, e o setor de agronegócios tem belas perspectivas.

Valor: Estas fronteiras não estão muito ancoradas em commodities? E isso não indica retração dos setores exportadores de bens finais, que tem um produto inovador?

Coutinho: É verdade, mas isso não significa que devamos deixar de aproveitar do ciclo de oportunidades nestes setores. E precisamos atentar para duas coisas. Primeiro, que esses setores devem investir muito mais em inovação tecnológica. Para ser competitivo em commodities é preciso manter um processo de inovação tecnológica para não perder a liderança. Mas o país também precisa de uma política muito forte de incentivo ao seu desenvolvimento nas áreas intensivas em conhecimento. Infelizmente o abandono de políticas industriais nos últimos 15 anos ou mais prejudicou o desenvolvimento em vários setores, onde retrocedemos. E aí precisamos reconstruir capacidades. Precisamos aproveitar as oportunidades na digitalização da televisão, em saúde pública, com vacinas, medicamentos. E nessa área, por exemplo, usar o poder de compra do setor público.

Valor: E internamente, quais são os desafios do BNDES para dar suporte a esse ciclo?

Coutinho: Temos um duplo desafio. Primeiro, não podemos deixar de apoiar esse ciclo de investimentos em ascensão e isso significa que o banco precisa estar preparado para aprovar e desembolsar mais, tornando-se mais eficiente, melhorando os prazos de aprovação. Mas temos outro desafio que é o fato de que nos próximos três anos cerca de um terço de nossos 2 mil funcionários chegarão em idade de aposentadoria . Eu solicitei e recebi autorização para elevar para 2,2 mil o quadro de funcionários. Estamos chamando concursos para ampliar essa base, mas mais importante que isso é proceder à substituição de funcionários altamente qualificados por uma nova geração. Estamos preparando um programa de formação de sucessores pelo qual os funcionários que estão deixando o banco se comprometerão a transmitir o seu conhecimento para as novas gerações. E conseguimos, com apoio do ministro Paulo Bernardo, aproximar as duas carreiras, a antiga tinha salários bastante razoáveis e a nova tinha salários muito defasados (o reajuste será de 20%). Esse desafio gerencial se torna mais agudo porque estamos implantando uma nova plataforma de processos e espero que, ao final, o BNDES possa manter sua competência e operar com prazos mais curtos. Com meus antecessores, o prazo médio foi reduzido de 11 para seis meses, mas esse ainda é um prazo alto que eu gostaria de reduzir substancialmente. Esse desafio exigirá uma política muito mobilizadora de formação de recursos humanos, qualificação de pessoal e estímulo ao mérito e à produtividade que serão reconhecidos no sistema de promoção interno que privilegiará o mérito e não a antiguidade.

Valor: Isso não existe hoje?

Coutinho: A carreira antiga privilegiava mais a antigüidade que o mérito, mas agora o privilégio das promoções será muito mais por mérito e menos por antigüidade.

Valor: Vocês já sabem como vão medir esse mérito?

Coutinho: Estamos trabalhando com consultorias especializadas para implantar uma política de recursos humanos que tenha elementos subjetivos de avaliação da produtividade. O relevante é premiar as pessoas que tenham capacidade de entregar resultado.

Valor: Vocês já definiram a data do leilão da Brasiliana?

Coutinho: Essa questão continua sendo discutida, mas a tendência é que haja um adiamento.

Valor: Um adiamento para depois do segundo leilão do Madeira?

Coutinho: Possivelmente para depois do leilão de Jirau.

Valor: E por quê?

Coutinho: Para que não haja nenhuma interferência de um processo sobre o outro na medida em que a prioridade é a geração de energia nova e não a transferência de controle. Mas essa matéria ainda está sendo avaliada.