Título: O resgate bancário de US$ 500 bi na Europa
Autor: Assis, J. Carlos de
Fonte: Valor Econômico, 07/01/2008, Opinião, p. A12

Logo depois da posse de Roosevelt, em 1933, em plena Grande Depressão nos Estados Unidos, um banqueiro até então obscuro, chamado Marriner Eccles, deu um depoimento histórico no Senado. A partir de seu modesto posto de observação, um banco de porte médio do meio-oeste, ele resumiu a crise como uma situação na qual alguns bancos tinham dinheiro de sobra para emprestar, mas não havia tomador, por falta de investimento, e não havia investimento, por falta de demanda. Sua sugestão era que o governo tomasse emprestado dos bancos esse dinheiro, criando demanda por meio de obras e de gastos públicos e, assim, estimulando a retomada do investimento e do emprego.

Simples, não? Esse notável depoimento antecipou a agenda do New Deal, que o próprio Eccles, a despeito de sequer ter curso superior, ajudaria a conduzir na condição de um dos mais famosos e respeitados presidentes do Banco Central norte-americano, o Fed. Mais notável ainda, antecipou também, em três anos, a obra magna com que Keynes expôs essas mesmas idéias de forma rigorosa e magistral na "Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda" - que se tornaria a bíblia das políticas de pleno emprego nos anos seguintes e a âncora do Estado de bem-estar social nos países industrializados no pós-guerra.

Tudo isso me veio à mente diante do anúncio do Banco Central Europeu, de que vai injetar até US$ 500 bilhões no sistema bancário sob sua influência para enfrentar a crise internacional desencadeada no mercado subprime norte-americano. É muito dinheiro. Quase metade do PIB brasileiro. Não obstante, pode não resolver a crise. Os bancos ilíquidos terão dificuldade de oferecer garantias seguras para a tomada de empréstimos. Os bancos líquidos continuarão decididos a não socorrer seus pares mais fracos, conforme advertiu o presidente do Banco da Inglaterra. Assim, todo esse dinheiro pode converter-se numa mônada de liquidez, pouco eficaz na prática.

A razão é que o sistema monetário europeu, estruturado em torno do BCE, está descolado institucionalmente do sistema fiscal. (O nosso também, pelo menos na prática). Trata-se de uma invenção neoliberal, que nega a própria história do capitalismo. Desde que os reis emitiam moedas de circulação forçada, política monetária e política fiscal são irmãs siamesas. Não há, a rigor, uma e outra, mas as duas juntas, a política fiscal-monetária. Modernamente, existe uma separação de funções entre o Tesouro, que emite títulos (moeda remunerada, fiscal), e o Banco Central, que emite a moeda-papel de circulação. Mas ambos, para a boa saúde do sistema, têm que atuar coordenadamente.

-------------------------------------------------------------------------------- No ciclo recessivo, as empresas têm nos títulos do Tesouro a melhor alternativa de aplicação financeira --------------------------------------------------------------------------------

Assim, durante uma recessão, o Tesouro deve tomar o dinheiro que está sobrando no mercado mediante a venda de seus títulos através do Banco Central, e este deve facilitar o processo mediante a redução da taxa básica de juros. Na medida em que a economia retomar, a demanda por moeda aumentará, o que levaria o Banco Central, nas operações de mercado aberto, a aumentar moderadamente a taxa básica de juros, induzindo a venda de títulos públicos em carteira pelo mercado, viabilizando a expansão do crédito. Essa forma de condução da política fiscal-monetária é conhecida como política anti-cíclica, sendo padrão na institucionalidade norte-americana e em outros países.

A contrapartida financeira desse processo é que, no ciclo recessivo, as empresas têm nos títulos do Tesouro a melhor alternativa de aplicação financeira. Acumulando títulos do Tesouro numa carteira diversificada, empresas e bancos têm nesses papéis o melhor tipo de hedge, pois a autoridade fiscal-monetária que emite os títulos de dívida é a mesma que emite a moeda que os liquida. É um mundo bastante seguro. Mas para isso há de ter emissão líquida de títulos públicos, na saída do ciclo recessivo. Em outras palavras, é preciso criar déficit e aumentar a dívida pública, fazendo o oposto em situações de quase pleno emprego.

Inventaram, porém, que o BCE tinha que ser independente, pois essa seria a melhor forma de garantir a estabilidade da moeda - mandando às favas qualquer preocupação com emprego, por exemplo. Independente, portanto, não no sentido norte-americano, mas no sentido de autoridade absoluta, embora não eleita, sobre uma política pública fundamental. Uma operação como a do New Deal, se viesse a ser necessária hoje, seria impossível no território do euro. Os governos não teriam liberdade fiscal para tomar emprestado, limitados que estão ao teto de 3% do PIB de déficit nominal; e a política monetária independente giraria em torno de si mesma, no circuito financeiro, sem relação com a demanda efetiva.

De fato, o BCE é uma mônoda leibnitziana, no meio de uma mônoda maior, que é o próprio sistema financeiro privado enroscado sobre si, em operações especulativas, com frágil vinculação ao sistema produtivo privado ou estatal, ambos criadores de valores reais. O que estamos vendo é o epifenômeno da financeirização exacerbada. Essa anomalia de banco central foi criticada, no momento mesmo de sua instituição por economistas como Jan Kregel, apontando as diferenças dele em face do Sistema de Reserva Federal norte-americano - onde, por décadas, Tesouro e Fed jogam em geral no mesmo time, para o mesmo lado. (O caso brasileiro também é esdrúxulo, mas isso é outra história).

A gigantesca operação em curso de salvação do sistema bancário europeu pode resultar num fracasso escatológico, com quebras em cadeia e o efeito inevitável de uma concentração de bancos sem paralelo na história. Ou o BCE, para lançar uma bóia de salvação para os bancos ilíquidos, baixará as regras prudenciais de Basiléia, mandando para o espaço anos a fio de retórica sobre governança. Certo, essa crise não tem solução keynesiana, pois não é uma crise de demanda efetiva. Mas tudo o que ela parece ser não é propriamente a explosão de uma bolha, mas de uma mônada - talvez com repercussões limitadas na economia real - o que acaba sendo uma boa notícia.

J. Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero.