Título: Depois de crescer, Gol chega a encruzilhada
Autor: Rittner, Daniel; Campassi, Roberta
Fonte: Valor Econômico, 20/02/2008, Empresas, p. B3

Em sete anos de existência, a Gol mexeu com as estruturas da aviação brasileira. Numa época em que a líder de mercado deixava suas aeronaves voando seis horas por dia e ainda servia vinho a bordo dos vôos domésticos, a família Constantino trouxe um punhado de novos conceitos ao setor aéreo no país. Aviões em uso até 14 horas por dia, vendas concentradas na internet e barrinhas de cereal provocaram um choque de custos que permitiram tarifas mais baixas e deram à Gol a possibilidade de surfar na onda do inédito crescimento de dois dígitos da demanda. Por vários anos, o céu foi o limite - os planos incluíam exportar o conceito "baixo custo, baixa tarifa" a toda a América do Sul até 2010 e ter assumido a liderança do mercado doméstico no ano que terminou.

Agora, como um adolescente confuso com o que pretende fazer da vida, com o agravante de que todo o cenário à sua volta ficou bem mais complicado, a Gol vive uma encruzilhada. Ninguém espera que a companhia entre em fase de declínio e repita o destino das concorrentes - Transbrasil, Vasp e a antiga Varig - cujas lacunas deixadas no mercado ela soube aproveitar tão bem. Mas os tempos de empolgação e crescimento acelerado podem ter chegado ao fim.

Apesar dos danos à imagem da TAM, com a retirada de seis aeronaves para manutenção não-programada no Natal de 2006 e o acidente de Congonhas em julho de 2007, foi a Gol quem mais sofreu em decorrência do caos aéreo. Com menos vôos ponto a ponto e menos aviões "dedicados" - jargão do setor para designar os jatos utilizados em uma única rota - do que sua principal concorrente, a Gol tende a sofrer com a saturação da infra-estrutura aeroportuária e a crise no controle de tráfego. Um sinal claro disso é que, no quarto trimestre de 2007, um dos principais indicadores da eficiência de uma empresa aérea - o "cask", que divide os custos operacionais pelo número de assentos-quilômetro oferecidos - teve aumento de 6,3%.

É uma implicação direta da redução de 14,2 para 13,3 horas na taxa de uso diário dos aviões, na contramão da otimização dos equipamentos que caracterizou a ascensão da companhia. No papel, escalas com duração de meia hora ou menos permitem às aeronaves serem aproveitadas por mais tempo no ar. Quando a pontualidade deixa de ser regra, esse planejamento some. Na interpretação de um ex-dirigente da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), a Gol teria muitas aeronaves e rotas estressadas por conta do que ele chama de "busca alucinada" por eficiência operacional.

Das pechinchas propiciadas pela depressão dos fabricantes de jatos no pós-11 de setembro às dificuldades atuais para encontrar equipamentos de grande porte no superaquecido mercado de aviões, do "boom" no mercado de capitais que permitiu à Gol captar recursos à desvalorização de 31% em suas ações preferenciais no ano passado, boa parte dos ingredientes que contribuíram para a vertiginosa expansão da companhia desapareceu ou passou por mudanças importantes.

Conforme apontam especialistas no setor, o próprio modelo de negócios da empresa enfrenta desafios. No mundo todo, as aéreas "baixo custo" apresentam ótimo desempenho enquanto aumentam o número de destinos oferecidos. Quando começam a pousar em uma nova cidade, geralmente essas empresas têm tarifas atrativas, criam demanda e roubam passageiros das companhias tradicionais. Em um segundo momento, provocadas pela competição, as aéreas tradicionais fazem um choque de gestão e também jogam com agressividade, recuperando ao menos parte dos passageiros roubados.

Como suas congêneres americanas ou européias, a Gol conquista com facilidade o viajante eventual. Mas quando ele passa a voar com freqüência e tende a dar maior receita unitária à empresa aérea, por aceitar tarifas mais altas de vez em quando, começa a deixar-se seduzir por pequenos mimos. Em uma economia com renda em alta e mais riqueza circulando, é natural que muitos passageiros cedam a pequenos mimos, como sanduíche quente e um programa de milhagem - tudo o que era tabu no modelo original pensado pela Gol .

Pela primeira vez, a Gol - sem contar a bandeira Varig - terá um aumento irrisório de sua frota em 2008. Será apenas uma aeronave. O crescimento da oferta está baseado na troca de aviões mais antigos, como o 737-300, por Boeings 737-800 que devem reduzir os custos operacionais da empresa. Com um número de aeronaves praticamente igual ao do ano passado, a administração do grupo prevê a criação de pouquíssimos vôos para novos destinos domésticos - estão previstas uma ou duas novas bases no caso da Gol e apenas reestruturações da malha da Varig, sem adição de mais destinos.

Na América do Sul, em rotas ligando o Brasil ao Chile e ao Peru, os planos de replicar o sucesso do modelo "baixo custo" no mercado doméstico esbarrou na regulamentação brasileira. Nos vôos internacionais, não há liberdade tarifária e o preço dos bilhetes tem que obedecer um piso definido nos acordos bilaterais. A entrada da Gol nesses países forçou empresas como LAN e Taca a dar descontos em relação aos altos preços cobrados anteriormente. Só que, quando as tarifas chegaram ao piso estabelecido nos acordos, os passageiros escolheram companhias que oferecem serviço de bordo completo e reduziram as taxas de ocupação da Gol, que cancelou as operações para Santiago e Lima, na semana passada.

Em meio a novos problemas, reerguer a marca Varig tem sido muito mais difícil do que a família Constantino imaginava quando desembolsou US$ 320 milhões, em março de 2007. Um ex-executivo da Gol, que deixou a empresas recentemente, definiu a Varig como um "saco sem fundo", pela quantidade de recursos injetados sem a obtenção, por enquanto, de resultados. A Gol informou que a Varig contabiliza um prejuízo operacional e líquido de R$ 300 milhões e R$ 160 milhões, respectivamente, desde abril do ano passado, quando o grupo assumiu de fato a gestão da subsidiária. Só no quarto trimestre do ano, A Varig teve uma perda operacional de R$ 200 milhões, devido principalmente ao fracasso dos vôos internacionais para Roma, Londres e Frankfurt. Estas rotas serão canceladas em março, menos de cinco meses após terem sido inauguradas e depois de uma verdadeira ginástica operacional para que a Varig não perdesse o prazo para operá-las.

Boa parte das dificuldades da companhia no mercado internacional se deve à falta de parcerias com empresas aéreas do exterior, que facilitam a captação e a distribuição de passageiros. Agora, com os cortes da malha internacional, conquistar parceiros ou mesmo entrar numa aliança de companhias aéreas pode ficar mais difícil. Enquanto isso, a TAM deve acelerar sua consolidação na Europa e nos Estados Unidos com sua iminente entrada na Star Alliance.

Outro obstáculo para a Varig no mercado internacional é a escassez de aeronaves disponíveis para aluguel imediato no mercado. A solução encontrada foi usar provisoriamente jatos 767-300 que estavam desatualizados. A maioria tem poltronas estreitas e não oferece muito em termos de entretenimento de bordo, como filmes em telas pessoais.

No mercado doméstico, a limitação no uso de Congonhas atingiu em cheio um dos grandes trunfos na compra da Varig: o alto número de "slots" (horários de pousos e decolagens) que a antiga empresa da Fundação Ruben Berta detinha no aeroporto. A demora do Cade em avaliar a venda da companhia para a Gol impede a integração das operações e o melhor aproveitamento das frotas de cada bandeira do grupo.

Ao contrário das previsões feitas no fim de 2006, a Gol ainda não se tornou líder de mercado nem com a compra da Varig. Para ultrapassar a TAM no mercado doméstico, apenas com as aeronaves que já possui hoje, o grupo Gol precisaria ter uma média de 77% dos seus assentos preenchidos, ou quase dez ponto percentuais a mais do que obteve durante o ano de 2007.

Apesar dos inúmeros desafios, seria ingenuidade apostar na estagnação das empresas da família Constantino. É raro encontrar caso semelhante de uma companhia aérea que, com sete anos de idade, tenha mais de 43% de um mercado grande como o brasileiro e esteja entre as mais valiosas de seu setor em todo o continente americano.