Título: Falta de energia vira pesadelo para emergentes
Autor: Rittner, Daniel
Fonte: Valor Econômico, 22/02/2008, Especial, p. A24

O encontro deste sábado entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Cristina Kirchner e Evo Morales, para discutir a transferência à Argentina de parte do gás boliviano consumido pelo Brasil, é um retrato das dificuldades enfrentadas hoje pelas economias emergentes no plano energético. Devido a políticas desencorajadoras de investimentos, secas rigorosas e aumento explosivo da demanda, crises no abastecimento de energia elétrica tornaram-se um fantasma para vários países em desenvolvimento - da Índia à África do Sul, do Chile à Argentina - e em muitos deles já são preocupação mais imediata do que as hipotecas americanas.

Um dos casos mais graves é o do Chile e deve ter repercussões diretas sobre a produção de cobre, o principal item da pauta de exportação. Uma combinação de três fatores instalou a crise energética no país. Em 2007, houve a terceira pior seca dos últimos 50 anos, esvaziando os reservatórios - as hidrelétricas representam 40% da geração total. A vizinha Argentina, maior fornecedora de gás para o Chile e às voltas com seus próprios apagões, reduziu drasticamente o abastecimento.

Em janeiro de 2007, transferia 15,6 milhões de metros cúbicos (m3) por dia. No mesmo mês deste ano, o suprimento diminuiu para 1,2 milhão de m3/dia. Para piorar, a usina de Neuhenco, uma das maiores térmicas chilenas, com 370 megawatts (MW) de potência, parou para reformas e só deve funcionar novamente em julho - quatro meses além do previsto.

O governo local anunciou uma série de medidas para conter a crise. Reduziu a voltagem nas residências, de 220 volts para 198 volts, o que economiza energia sem prejudicar o uso dos equipamentos. Esticou o horário de verão até a última semana de março e definiu uma meta de cortar 5% do consumo de eletricidade nas repartições públicas. Ao mesmo tempo, a indústria se dispôs a desligar voluntariamente o maquinário que não seja indispensável à produção. Uma campanha de racionalização, pedindo à população que substitua lâmpadas incandescentes por fluorescentes, acabou de ser lançada.

"Caiu a ficha, para todo mundo, da fragilidade institucional em que está ancorada a integração energética no Cone Sul", diz Mário Veiga, presidente da PSR Consultoria. "Numa situação de escassez de energia elétrica, é irrealismo acreditar que um país vá manter 100% de seus compromissos de exportação." Ele sugere o estabelecimento de acordos, entre os governos da região, para dar respaldo aos atuais contratos privados. Na América Central, seis países - Panamá, Costa Rica, Guatemala, Honduras, Nicarágua e El Salvador - criaram um mercado comum de energia e até um órgão regulador supranacional. "Por aqui, estamos bem atrasadinhos em relação a eles", analisa Veiga.

Embora tenha sido menos prejudicado do que o Chile, o Brasil também saiu perdendo com a crise energética na Argentina. O país tem um contrato privado para "puxar" até 2,2 mil MW por um sistema de interconexão no Rio Grande do Sul, mas desde 2005 não consegue importar nada. Em janeiro, quando a falta de chuvas acendeu a luz amarela do governo brasileiro sobre a possibilidade de um novo racionamento, isso fez diferença. "A crise que vivemos foi antecipada e ampliada pelo fato de que compramos 2,2 mil MW da Argentina, numa exportação de longo prazo, e não recebemos nada", diz Paulo Pedrosa, ex-diretor da Aneel e presidente da Abraceel, associação que representa as comercializadoras de energia.

Na América do Sul, dizem os especialistas, a praxe tem sido cortar totalmente a exportação de energia assim que se instala uma situação de escassez no plano doméstico. Na Argentina, os cortes de luz e de gás à indústria só não chegaram a um nível dramático devido à interrupção no fornecimento de energia ao Brasil e ao Chile. Como o consumo continua em expansão - por causa do "boom" da construção civil, que usa calefação nas novas moradias, e das vendas em alta de automóveis, que em boa parte são movidos a gás -, além de não ajudar, agora o país precisa de socorro dos vizinhos.

Outra região que enfrenta sérios problemas é o sul do continente africano. Nas primeiras semanas de janeiro, a África do Sul viveu uma sucessão de apagões e o governo reconheceu, após ter relutado inicialmente, que o país atravessa uma "emergência nacional", segundo o próprio presidente Thabo Mbeki, em pronunciamento sobre o estado da União, na Assembléia Nacional.

A economia sul-africana cresce acima de 4,5% ao ano desde 2004, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e a expansão acelerada no consumo de energia superou o ritmo de investimentos no aumento da oferta. A inclusão de milhões de consumidores ao sistema, com o fim do apartheid, e pesados subsídios para baratear as tarifas estimularam a demanda. A Eskom, estatal que controla 96% da geração no país e tem 39 mil MW de capacidade instalada, cortou o fornecimento às mineradoras por quatro dias, no mês passado.

Sem energia para ventilação e desaquecimento das minas subterrâneas, a indústria praticamente paralisou a produção de ouro e platina nesse período. Depois do susto, aceitou um acordo que atende 90% das necessidades de consumo, mas é inevitável que a produção sofra um pequeno tombo.

Altos funcionários da Eskom passaram os últimos dias no Rio de Janeiro e em Brasília. Ouviram a Aneel, Eletrobrás, Empresa de Pesquisa Energética (EPE), agentes do setor e até jornalistas que cobriram a crise de 2001 sobre a experiência brasileira. Ficaram interessados no mecanismo de estabelecer um racionamento que premiava quem economizava energia e impunha tarifas mais altas aos gastadores de eletricidade. "Houve enorme disposição e agilidade da sociedade em contribuir com o racionamento", diz Pedrosa, um dos consultados pela Eskom. Na África do Sul, foram implantados cortes programados de luz, em um sistema de rodízio entre as localidades atingidas, e autoridades admitiram que a crise vai durar pelo menos cinco anos, podendo afetar a Copa do Mundo de 2010.

Da mesma forma que as políticas erráticas de Bolívia e Argentina, a crise energética na África do Sul emparedou os vizinhos. A Namíbia importa 238 MW do país - metade de sua demanda - e a Eskom já notificou que cortará o fornecimento de 30 MW. O mesmo aconteceu com Botswana, que depende da África do Sul para satisfazer 70% de suas necessidades energéticas e pediu socorro a Moçambique. Na Índia, a falta de energia é crônica e deverá durar pelo menos até 2011 ou 2012, segundo o próprio governo. A demanda atual é de 107 mil MW, mas a capacidade instalada soma apenas 93 mil MW.