Título: Cuidado com o barril de chope
Autor: Claudia Safatle
Fonte: Valor Econômico, 04/02/2005, Brasil, p. A2

O governo identifica pelo menos dois fatores que estão obscurecendo o cenário econômico e exigindo, do Banco Central, uma atuação mais rigorosa na política monetária do que a imaginada para cumprir a mesma meta, de 5,1% de IPCA este ano: a forte expansão do crédito; e "o custo Planalto", entendido como as sistemáticas especulações de uma ala do governo em torno de mudanças na política econômica e troca da diretoria do BC, a cada reunião em que o Copom eleva os juros. O foco do debate - e o governo tem ouvido economistas da área privada - está, hoje, centrado nos novos elementos que obstruem os canais de transmissão da política monetária de curto prazo. O BC estaria, desta vez, lidando com uma situação ainda não experimentada pelo regime de metas, introduzido em 1999: uma inflação de demanda, movida pelo aumento do emprego, da renda e do crédito, que não estaria respondendo a contento aos aumentos consecutivos das taxas de juros. Aliam-se a isso os persistentes boatos de mudança na política econômica, que abalariam a credibilidade do BC, introduzindo um elemento a mais de insegurança que teria que ser também combatido com mais juros. Este é um problema, entretanto, que parece preocupar mais o governo do que o mercado, que já não atribui muita relevância ao grupo do Palácio do Planalto que, segundo o presidente Lula, "planta" essas especulações. No caso da expansão do crédito, não há muito o que fazer, avaliam os economistas oficiais. Até porque é um "bom problema" criado a partir de mudanças microeconômicas patrocinadas pelo próprio governo. Não há como ter uma economia pujante com um sistema de crédito escasso e caro. A expectativa é de que o crédito como proporção do PIB chegue este ano à casa dos 30% e, num futuro próximo, a 50%. Para prover mais credibilidade ao BC, a única solução que o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, busca é a aprovação do projeto de autonomia operacional do Banco Central. Fontes oficiais garantem que, agora, de fato, o presidente Lula autorizou Palocci a levar adiante a idéia da autonomia como forma de barrar as tentativas de ingerências políticas nas decisões do Copom. Em paralelo, Palocci costura, politicamente, a execução de um forte corte (ou contingenciamento) dos gastos do orçamento deste ano para dar uma resposta, também do lado fiscal, às pressões inflacionárias e, assim, reverter as expectativas negativas criadas no fim de 2004, quando o governo afrouxou os gastos com custeio embalado por um espetacular aumento das receitas. O orçamento aprovado pelo Congresso prevê investimento de R$ 21,5 bilhões em 2005, o que representa um aumento de 120% em relação ao executado em 2004. Essa cifra deve ser podada para uns R$ 10 bilhões e o corte, incluindo os custeios, deve chegar a R$ 16 bilhões.

Fazenda acha que economia continua bem aquecida

A decisão final, que sairá até o fim do mês, será uma importante sinalização sobre se a equipe econômica vai conseguir retomar as rédeas do controle dos gastos públicos neste ano, numa disputa que tensiona o governo. Todos os problemas colocados à mesa, hoje, são, porém, fruto de uma situação econômica de bonança que há muitos anos não se via. O crédito cresce, o desemprego cai, a renda aumenta e aquece a demanda agregada da economia. Com isso a inflação ressurge, os juros sobem, e, por conseqüência, a moeda doméstica se valoriza. O BC compra dólar para sustentar uma cotação razoável, mas tem que pagar um diferencial de taxa de juros (internos e externos) que eleva o déficit nominal. O que, somado ao aumento da taxa de juros, acaba exigindo um reforço fiscal. Ou mais inflação. No ano passado, para um crescimento de cerca de 5% do PIB, cálculos indicam que o governo, com gastos gerais mais transferência de renda às pessoas, contribuiu com algo em torno de 1,2 ponto percentual. Ou seja, operou uma política fiscal sensivelmente expansionista, apesar do superávit primário de 4,61% do PIB. Para este ano, não está claro se o governo perseguirá a meta de superávit de 4,25% do PIB ou se esta será maior para compensar os movimentos de alta do juro. Razão pela qual é aguardada uma posição sobre o corte dos gastos orçamentários. Mesmo sendo um leque de problemas típicos de um cenário bom, de otimismo, o que por si só já é positivo, a situação não comporta erros. A avaliação da Fazenda é de que a economia continua bem aquecida, apesar de serem vários os sinais de que ela já tirou o pé do acelerador. Em janeiro houve queda das vendas de aço, embalagens de papelão ondulado, plásticos e veículos. A inflação, medida pelo IPC da Fipe, teve recuo de 0,67% em dezembro para 0,56% em janeiro. Paul Volcker, presidente do Fed no início dos anos 80, costumava dizer que o papel dos bancos centrais é o de tirar o barril de chope de cena quando a festa está começando. Apesar de esta ser uma tarefa nova para o BC do Brasil em meio ao regime de metas para inflação, não vale derramar a bebida na sala nem derrubar os convidados. Dado que não há nem padrão histórico-estatístico para estabelecer comparações, talvez seja melhor o BC ir devagar com o andor. Em 2004, pensou-se num "choque fiscal" O governo chegou a pensar num choque fiscal, em meados de 2004. A idéia não vingou por medo de uma recessão justamente quando a economia melhorava. O debate ocorreu quando se discutia o aumento do superávit primário de 4,25% para 4,5% do PIB. A sugestão do choque partiu de um alto funcionário, histórico petista, não economista, que entendia que o gradualismo poderia levar o governo a uma armadilha. Ele advogou a elevação da meta de superávit para 5% do PIB ou mais, acompanhada da imediata redução da taxa básica de juros. Seria, para o único defensor da idéia, uma forma de romper com o ciclo do aumento permanente da taxa de juros "cortando na própria carne", conforme disse. Hoje, não há mais como retomar tal proposta, inclusive por causa do calendário político-eleitoral.