Título: Energia fica mais cara no mercado livre e gera disputa judicial
Autor: Schüffner , Cláudia ; Santos , Chico
Fonte: Valor Econômico, 25/02/2008, Brasil, p. A4

A elevação do preço da energia elétrica no mercado livre em janeiro, gerada pela demora na chegada das chuvas de verão, provocou uma "tsunami" nas relações entre compradores e vendedores, cujo desfecho definitivo só será conhecido dia 18 de março, quando a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) liquida os contratos realizados em janeiro. Houve uma chuva de ações judiciais de compradores contra vendedores que desistiram de honrar contratos previamente assinados.

Oito dessas ações, a maior parte vitoriosas, chegaram ao conhecimento do Valor. As liminares foram obtidas na Justiça pela ArcelorMittal, Cien (do grupo Endesa), Cemig e Rede Comercializadora de Energia, ADM do Brasil e AES Infoenergy contra as comercializadoras União, Ecom Energia, Delta Comercializadora e a própria Rede, que não registraram contratos de venda no mercado atacadista. Pelas regras do mercado, cabe ao vendedor fazer o registro e o comprador deve apenas ratificar.

Existem dois mercados de comercialização de energia no país. O maior deles é o ambiente de contratação regulada (ACR), no qual a energia é comprada pelas distribuidoras estaduais em leilões do governo e vendida para os consumidores residenciais, chamados cativos. O outro é o ambiente de contratação livre (ACL), onde grandes consumidores, geradores, importadores, exportadores e comercializadores de energia negociam livremente a compra e venda através de contratos bilaterais.

No mercado livre, os contratos têm prazos e preços negociados entre as partes e liquidados na CCEE. Os preços são calculados semanalmente com base em modelos matemáticos que buscam captar a abundância ou carência de energia barata (hidrelétrica, principalmente) e formam o chamado Preço de Liquidação de Diferenças (PLD). Assim, quando os reservatórios de água das usinas estão de acordo com o previsto, o preço fica lá em baixo.

Se uma empresa vende 100 megawatts (MW) para outra, que compra a mesma quantidade, o registro é feito e liquidado mediante apresentação do contrato pelo vendedor. Se houver alguma diferença, como por exemplo no caso de um comprador ter contratado 80 MW e consumido 100 MW, essa diferença em energia tem que ser paga com base no PLD e não pelo valor contratual. Apesar de o PLD ter valores mais elevados, ele representa apenas um resíduo das operações contratuais. Para se ter uma idéia, a CCEE movimentou no ano passado R$ 2,7 bilhões, dos quais R$ 280 milhões foram liquidados ao preço máximo.

Embora a maior parte da energia consumida no Brasil saia do mercado regulado, o mercado livre não é trivial e abastece grandes grupos econômicos. Hoje, a CCEE negocia cerca de 9% do consumo total de energia do país. Os negócios envolvem entre 800 e 900 agentes, segundo a CCEE. Quando a energia era abundante e os preços estavam baixos, esse mercado registrou poucos problemas e baixa inadimplência.

Mas com a redução da oferta de energia e a escalada dos preços, a instabilidade desse mercado aflorou. Com a escassez de chuvas em janeiro, O PLD, que em agosto estava em R$ 39,27 (regiões Sudeste e Centro-Oeste), em janeiro, bateu no teto máximo R$ 569,59 o megawatt/hora (MWh) - o que caracteriza preço de racionamento - tendo fechado aquele mês em R$ 502,45/MWh. Foi quando começaram os problemas.

Sobre variados argumentos, diversos contratos foram contestados após a energia já haver sido consumida (as regras permitem o registro até o nono dia útil após o fechamento do mês). Sem contrato, o consumidor teria que pagar pelo preço do PLD por toda a energia consumida, além de multas e encargos. Nos casos que chegaram ao Valor, a Justiça obrigou a validação dos documentos mesmo sendo eles apresentados à CCEE pelos compradores.

Ciente do nervosismo dos agentes, o presidente da CCEE, Antonio Carlos Fraga Machado, disse ao Valor que não vê grandes riscos para o mercado livre como um todo. "Achamos que a liquidação (dos contratos de janeiro, que será feita em março) será tranqüila e com nível de adimplência alto. Se for demonstrada alguma incapacidade de alguém ele será excluído do mercado", garantiu.

O executivo admite que os episódios evidenciaram a necessidade de aumentar os controles sobre as operações e de fazer algumas "correções" nesse mercado através de medidas preventivas. Entre as mudanças em estudo, está a verificação prévia do lastro físico dos vendedores. Segundo ele, a legislação tem mecanismos para punir os faltosos, mas é preciso também haver normas que previnam a entrada de aventureiros no negócio. Apesar disso, Machado diz que "a premissa de que o mercado é livre permanece".

Maurício Bähr, presidente da Suez Energy, maior gerador privado do país e que controla a Tractebel, também considera importante que exista um mercado livre no Brasil. "Defendo o mercado, mas é claro que se tiver necessidade de ajustes, eles devem ser feitos. E se alguma empresa estiver trabalhando de forma incorreta, que seja punida."

No contrato entre a siderúrgica ArcelorMittal e a União Energia, cujo preço de contrato era de R$ 122,35, a consumidora alega que seu prejuízo em janeiro seria de R$ 25 milhões. A Cemig, no contrato não registrado pela Ecom Energia, afirmou à Justiça de São Paulo (14ª Vara, como o caso Arcelor) que seu prejuízo no mesmo mês seria de R$ 15 milhões. A Rede Energia ganhou outra liminar contra a União na 26ª Vara Cível de São Paulo. Antes, a mesma União já havia perdido, na Justiça do Rio, uma tentativa de obter judicialmente o direito de não registrar um contrato de venda feito com a Cien.