Título: A Pequena Notável sem balangandãs
Autor: Osvaldo Siciliano
Fonte: Valor Econômico, 04/02/2005, EU & FIM DE SEMANA, p. 3-7

Uma vida controvertida Foto: Divulgação

Carmen Miranda: mito teria nascido da política de boa vizinhança, implantada pelo governo de Roosevelt, para estreitar relações com a América Latina O que faz uma garota de Seattle, em pleno século 21, brincando com uma boneca de Carmen Miranda? E o que leva um grupo de dondocas de Los Angeles a batizar uma exposição de flores com o nome de uma cantora "latino-americana" que embalava sonhos eróticos de seus avôs? Enquanto os americanos sugam até o caroço toda a matéria pop da intérprete de "South American Way", os brasileiros precisam de uma efeméride para redescobrir Carmen Miranda (1909-1955). Outros fatores No ano em que se completam 50 anos de sua morte, fãs poderão assistir a shows e a homenagens à cantora, acadêmicos vão se deliciar com teses de mestrado e doutorado de todos os tipos, e até neófitos poderão ser conquistados - vem aí a biografia oficial de Carmen, escrita por Ruy Castro e editada pela Companhia das Letras. Um olhar diferente Autor de biografias de Nelson Rodrigues e Garrincha, Ruy Castro assegura que vai decifrar todos os enigmas em torno da cantora luso-brasileira de maior sucesso no exterior. "Só posso dizer que o livro se chamará 'Carmen' e terá mais de 500 páginas. Estou desde 2003 me dedicando integralmente à pesquisa; entrevistei uma centena de pessoas e prometo que muito do que se diz por aí sobre ela será desmentido", afirma o escritor, que esconde um pouco o jogo de sua nova obra. Diz que está proibido, pela editora, de adiantar detalhes sobre o livro. Shows, mostras e desfiles Foto: fotos: divulgação

A baiana estilizada não é kitsch: virou cult, desde que Caetano Veloso a saudou como símbolo máximo do tropicalismo, diz a pesquisadora Eneida Maria de Souza O grande mito Carmen Miranda era, na verdade, uma mulher de estatura baixa, de 1m53. Para disfarçar, usava os saltos-plataforma, um dos muitos elementos que imortalizaram sua imagem. Por esse motivo, o radialista César Ladeira a batizou de "A Pequena Notável". Mas, de fato, como diz Castro, há uma série de controvérsias quanto a passagens importantes da carreira de Carmen. Uma delas parece ser a preferida de acadêmicos e historiadores: a política de boa vizinhança, implantada pelo governo do presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) nos anos 40 para estreitar as relações políticas e econômicas dos EUA com a América Latina durante a Segunda Guerra Mundial. Mas esse contexto foi decisivo para o sucesso - e depois o fracasso - da cantora em Hollywood? Para Tânia da Costa Garcia, professora do Departamento de História da Unesp, não há dúvida de que foi, sim. Na tese de doutorado, "O 'It Verde e Amarelo' de Carmen Miranda (1930-1946)", transformada em livro pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pela editora Annablume, Tânia afirma que a força da indústria cinematográfica americana, estimulada pelo furor expansionista de Roosevelt, teria sido determinante para se criar a imagem de baiana estilizada de Carmen - imagem que a imortalizou nos EUA, mas que, ao mesmo tempo, a impediu de fazer vôos maiores.

O fox-rumba veio depois; antes, criticando americanismos, Carmen fazia a defesa apaixonada, com estímulos estadonovistas, do "nosso samba, que é coisa rara" "Carmen foi obrigada a entrar no jogo de Hollywood. Deixou de ser a cantora brasileira (portuguesa já não era há muito tempo) de sambas e marchinhas para se encaixar perfeitamente nos padrões do artista latino-americano personalizado pelos americanos. O que ela cantava ali era um fox-samba, um fox-rumba, não o samba de Dorival Caymmi", analisa Tânia. Para Tânia, Carmen se beneficiou dessa imagem, fez muito sucesso, mas quando a Segunda Guerra Mundial acabou, dando fim à política de boa vizinhança, a cantora passou a não despertar o mesmo interesse da indústria americana. "Além do mais, ela não conseguiu se livrar do velho estereótipo de rainha dos balangandãs, o que limitou seu campo de trabalho. Para Carmen, conseguir cantar outros gêneros musicais nos EUA, livrar-se daquela imagem, era tão difícil quanto Jerry Lewis deixar de fazer comédia para estrelar um filme policial." Em sua tese, Tânia lembra que, antes de virar uma estrela latina nos EUA, Carmen foi usada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas como símbolo da nacionalidade, em oposição ao crescimento da invasão da cultura estrangeira no país, trazida, sobretudo, pela popularização do cinema falado e do fox-trot. A intérprete, que anos depois cantaria fox-rumba para americano ver, defendia com paixão os ritmos brasileiros em canções como "Eu Gosto da Minha Terra", de Randoval Montenegro: "Sou brasileira, reparem/ No meu olhar, que ele diz/ E o meu sabor denuncia/ Que eu sou filha deste país// Sou brasileira, tenho feitiço/ Gosto do samba, nasci pra isso/ O fox-trot não se compara/ Com o nosso samba, que é coisa rara". Para Tânia, Carmen, como muitos artistas da época, foi beneficiada pela política nacionalista do Estado Novo e, ironicamente, a partir dela conseguiu difundir sua imagem, com um toque de cultura nativa e glamour, que tanto agradava aos americanos. "Ao contrário do que se diz, os velhos fãs, que a acompanhavam pelo rádio, aceitaram com naturalidade o processo de 'americanização' de Carmen". A crítica, segundo a pesquisadora, teria partido da elite carioca, que, na verdade, não engolia o sucesso de uma artista vinda do samba, um gênero da cultura negra, popular, não aceito pela aristocracia. "Tanto que ela foi vaiada no Rio de Janeiro, durante uma festa beneficente organizada por Darcy Vargas, mulher de Getúlio Vargas, só porque cumprimentou a platéia em inglês e cantou, também em inglês, 'South American Way'. Uma vaia carregada de hipocrisia, pois colonizada era a elite, que só valorizava a música estrangeira e renegava o samba", observa a professora da Unesp. Doutora em teoria da literatura e professora titular da Faculdade de Letras da Universidade de Minas Gerais (UFMG), Eneida Maria de Souza também acredita na tese de que Carmen Miranda não teria conseguido o mesmo sucesso nos EUA se os americanos não resolvessem ser os melhores vizinhos do mundo. "Que ela não teria feito o sucesso que fez sem a política de Roosevelt, não há dúvida. Mas é difícil afirmar que a carreira de Carmen entrou em declínio só porque ela não conseguiu se livrar da imagem de baiana estilizada."

Sérgio Cabral: "Ela estava longe de ser a melhor cantora, a mais afinada, de voz mais bonita, mas brilhava como ninguém"

Vários fatores podem ter contribuído para essa queda: o relacionamento com o marido e empresário David Sebastian, que teria assinando contratos duvidosos e mantido relações com outras mulheres durante o casamento, a depressão e o abuso de tranqüilizantes. "Nada disso pode ser descartado", afirma Eneida. Morta no dia 4 de agosto de 1955, aos 46 anos, nos EUA, vítima de problemas no coração (um dia antes, quase desmaiara nos braços do apresentador, durante um programa de televisão), Carmen, segundo a pesquisadora, dificilmente teria grandes chances de recuperar sua carreira ainda na década de 50. "Nos EUA, sua imagem já não tinha a mesma força e, no Brasil, com a chegada da televisão, muitos artistas da era do rádio mergulharam no ostracismo. Isso, sem contar que a bossa nova estava despontando e gostar de Carmen, com aquelas roupas extravagantes, cantando inglês, seria considerado cafona pela turma da Zona Sul carioca", diz Eneida. Hoje, lembra a professora da UFMG, Carmen está distante de ter uma imagem kitsch: virou cult - processo que se iniciou no fim dos anos 1960, quando Caetano Veloso a saudou como símbolo máximo do tropicalismo, "um signo sobrecarregado de afetos contraditórios". "Caetano resgatou-a na canção 'Tropicália', enaltecendo justamente essa imagem ambígua de Carmen. Vinícius de Moraes, anos antes, já tinha tido impressão parecida, admirado com aquela mulher que mexia os braços enquanto equilibrava um abacaxi na cabeça." O jornalista Sergio Cabral, biógrafo dos mais respeitados - autor de livros sobre Pixinguinha, Tom Jobim, Elizeth Cardoso e Nara Leão - tem ojeriza a tratados acadêmicos, sobretudo os que sustentam que a política de boa vizinhança foi fundamental para o sucesso da cantora nos EUA. "Em primeiro lugar, a Carmen já tinha viajado aos EUA em 1939, dois anos antes de a política da boa vizinhança ser consolidada. Isso é fato. O mais grave é creditar o sucesso de uma cantora de enorme talento como a Carmen a um Departamento de Estado", critica o jornalista. Cabral se lembra do dia em que foi assistir pela décima vez a "Alô, Alô Carnaval" (um dos grandes musicais brasileiros, lançado em 1936 e dirigido por Adhemar Gonzaga), ao lado de Paulo Autran, que nunca tinha visto o filme. O ator, com os olhos vidrados nas irmãs Carmen e Aurora Miranda, perguntou a Cabral: "Quem é Carmen?". "A da direita", respondeu o jornalista. "Eu tinha certeza de que era ela. A Carmen brilhava, tinha algo que a irmã nunca ia ter." O escritor diz que era assim desde que a artista começou a gravar na RCA Victor, nos anos 1930, quando todos os artistas da gravadora paravam para ouvi-la cantar, inclusive os disciplinadíssimos músicos de Pixinguinha. "Ela estava longe de ser a melhor cantora, a mais afinada, de voz mais bonita, mas, apesar das limitações, brilhava como ninguém. O Ary Barroso explicava esse fenômeno comparando-a ao Domingos da Guia (célebre zagueiro do Flamengo e do Vasco nos anos 30 e 40). Dizia que ele cabeceava de olhos fechados, tinha um chute fraco, mas não deixava de ser o melhor zagueiro do Brasil", lembra Cabral. "Nenhuma intérprete brasileira vendeu tantos discos quanto ela. Nem mesmo Dalva de Oliveira, quando se separou de Herivelto Martins e viveu uma grande fase de sucesso nos anos 1950, ou Clara Nunes, que rompeu o tabu de que cantora não vendia discos nos anos 1970, chegaram aos números de vendagem de Carmen", prossegue. A cantora nasceu na freguesia de Marco de Canavezes, Portugal. Veio para o Brasil com 10 meses e foi criada na boêmia carioca. Estreou nos palcos da Cidade Maravilhosa parecendo predestinada ao êxito. O compositor Josué de Barros percebeu logo o potencial de Carmen e resolveu investir em sua carreira, pagando-lhe cursos de canto. Logo veio a oportunidade para gravar o primeiro disco. Vice-presidente da filial brasileira da CMG, empresa que detém os direitos de imagem de toda a obra de Carmen, no Brasil e no exterior, Kitty Monte Alto tem vários planos para 2005. Não autorizada pelos herdeiros da cantora a revelar números, Kitty adianta que pela primeira vez em muitos anos o faturamento com a imagem da artista no Brasil vai ultrapassar o arrecadado nos EUA. "É preciso aproveitar o gancho da data para desengavetar projetos antigos. Por exemplo, o Museu Carmen Miranda, no bairro do Flamengo, no Rio, guardou durante bom tempo um acervo fantástico, que não podia ser exposto por falta de espaço (apenas 20% do acervo podem ser vistos pelos fãs). Agora, nos 50 anos, conseguimos o apoio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), que vai promover uma grande exposição no segundo semestre", adianta Kitty, que pretende levar a mesma mostra para São Paulo e já negocia com o Masp e a Oca, no Ibirapuera. A CMG também tem mantido conversas diárias com o pesquisador e historiador Ricardo Cravo Albin, para promover um grande desfile de moda com roupas e acessórios usados por Carmen dos anos 1930 aos 1950. Batizado de "Carmen Miranda Fashion", o desfile será realizado no Copacabana Palace, com a colaboração de vários estilistas brasileiros. Não muito longe dali, na Praia de Botafogo, deve ser montada uma grande arena de shows só com o repertório gravado pela cantora. Fãs da artista, Caetano Veloso e Bebel Gilbero já confirmaram presença; só precisam assinar contrato com a CMG. Antes, diretores da empresa embarcam para Paris, onde vão acompanhar de perto mais uma exposição em homenagem a Carmen, no charmoso bairro de Marrais. E alguém disse que o papa é que era pop...