Título: Senhora
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2005, Brasil, p. A2

"T anto de meu estado me acho incerto (.) que o mundo todo abarco e nada aperto. (.) Se me pergunta alguém por que assim eu ando, respondo que não sei. Porém suspeito que é só porque vos vi, minha Senhora." Os versos são de Camões. A benquerença? Igual à do bicheiro Giovanni pela senhora do destino na novela das oito. É amor que resiste ao tempo, mas não consegue impedir que Nazaré, a perversa dona de uma tesoura de má hora, roube a novela de Maria do Carmo. A "Folha de S. Paulo" (6/2) perguntou a Renata Sorrah, que interpreta a vilã, quais instituições mereceriam umas tesouradas da Nazaré. Várias, respondeu a atriz. Mas a imprensa em geral e os políticos em particular têm preferido concentrar as tesouradas no Banco Central e no Copom. Quem discorda dos críticos argumenta que as duas instituições não podem dividir sozinhas o título de "Senhora do Desatino" do Carnaval de 2005. Lembram que o aumento dos gastos públicos e a expansão do crédito têm solapado a eficácia da política monetária ao contribuir para a expansão da demanda agregada. A política fiscal, na contramão da política monetária, aquece a economia e alimenta a remarcação de preços. O gasto do governo federal aumentou 9% em termos reais em 2004, um ritmo duas vezes mais rápido que o do PIB. O déficit do INSS chegou a 1,8% do PIB e as despesas da Previdência continuarão a subir fortemente com o aumento do salário mínimo de R$ 260 para R$ 300. O desastre financeiro, que a ex-prefeita de São Paulo legou a seu sucessor, estimula os pedidos de alívio dos governos subnacionais. Enquanto isso, os aumentos da Selic anulam o ganho que o crescimento trouxe para o superávit primário. Graças à redução da taxa Selic, muito alta em 2003, o gasto do governo com juros caiu de 9,3% do PIB naquele ano para 7,3% em 2004 e permitiu a redução em dois pontos percentuais da participação no PIB do déficit fiscal (de 5,1% do PIB em 2003 para 2,7% em 2004). Em 2005 vamos assistir ao movimento inverso. É formidável a diferença entre a Selic e as taxas de juros externas. Esse diferencial aumenta a procura pelos títulos brasileiros e essa procura pressiona para baixo a taxa de retorno dos ativos que vencem em seis meses. Solapa assim a capacidade do BC de influenciar as taxas de juros no médio prazo. O argumento de que nossa taxa de juros é ineficaz no controle da inflação porque falta autonomia política ao BC não convence. Pois a instituição age como bem entende. A restrição que, de fato, pesa sobre o BC é a incapacidade de projetar o impacto dos juros sobre a demanda. Por isso, o tamanho do efeito do aumento da taxa de juros é tema de discórdia. O que não se discute, entretanto, é que o próprio governo impede o funcionamento desse canal de transmissão ao aumentar a liquidez com a compra de reservas e criar novos mecanismos de expansão de crédito. As operações de crédito em consignação (crédito com desconto na folha de salário) dobraram entre janeiro e dezembro de 2004. A taxa de juros de longo prazo do BNDES se encontra, em termos reais, em torno de 2,5 % ao ano.

Política fiscal alimenta a remarcação de preços

A expansão do crédito neutraliza o aperto monetário que o Banco Central procura alcançar com o aumento da Selic. Com certeza, não há crescimento sem expansão de crédito. Mas a ordem do BC é controlar o crescimento. A expansão do crédito impossibilita o objetivo de reduzir a demanda pelo aumento dos juros. A transmissão do aumento da taxa de juros para o consumidor também fica comprometida, porque o aumento da taxa de juros ao consumidor é modesto em relação às taxas vigentes. Em compras pequenas, a diferença entre uma taxa de 44% ao ano e outra de 45% tem pouco impacto. Pois num financiamento de R$ 1 mil em 12 meses, a prestação sobe de R$ 104,50 para R$ 105. O desincentivo é negligenciável. Por isso, para controlar a inflação, o BC sempre se valeu de aumentos do compulsório (a parte dos depósitos bancários recolhidos ao BC). Na implantação do Plano Real, o BC, consciente de que os juros sozinhos não dariam conta do recado, aumentou o compulsório a 100% dos depósitos. O compulsório foi reduzido à medida que a inflação caía, mas sofreu novos aumentos em resposta aos choques inflacionários de 1999 e 2002. Os bancos transferem essa forma de imposto para o tomador de empréstimos. O "spread" bancário aumenta e o montante de crédito diminui. A operação obtém um aumento da taxa de juros no final da linha, sem prejuízo do orçamento fiscal. Vade retro, Tinhoso. O compulsório é uma forma pouco transparente de transferir recursos para o governo. O correto - mais uma vez! - seria cortar os gastos do governo. Os críticos do Copom me desculpem, mas não é a meta de inflação que é ambiciosa. Inadequada é a combinação da política fiscal e monetária. A mãe de nossos problemas são os gastos do governo com a Previdência social, as renúncias fiscais, os subsídios e a ineficiência da máquina pública. Por último, mas não menos importante, a folgada política monetária americana continua a exportar liquidez para o resto do mundo através da queda do dólar. Mr. Greenspan subiu a taxa básica nos EUA para 2,5% ao ano, mas, em termos reais, ela continua negativa. Se a política americana obriga o Banco Central Europeu a manter, a contragosto, sua própria taxa de juros negativa, seria difícil acreditar que o nosso BC goze de mais independência do que o Europeu para navegar contra a maré sem criar graves desequilíbrios. Com certeza, o excesso de liquidez internacional ajuda a manter nossa inflação baixa ao apreciar o câmbio. O BC não precisa reforçar esse movimento com um aumento da Selic. Sem consistência fiscal, não existe espaço para o BC controlar a demanda. O Brasil continua a dançar de acordo com a música da conjuntura internacional, senhora do destino da nossa economia.