Título: O falecido socialismo
Autor: Cláudio Gonçalves Couto
Fonte: Valor Econômico, 10/02/2005, Política, p. A6

Hoje o PT completa 25 anos de sua fundação. Num quarto de século, passou por muitas transformações (como seria de se esperar), mas nenhuma delas mais significativa do que a provocada por sua conversão em partido de governo. O PT foi gerado e inicialmente gerido por lideranças oriundas, preponderantemente, de três fontes: o movimento sindical, os movimentos sociais de base (incluída aí com grande peso a militância católica) e a esquerda clandestina dos tempos da ditadura militar. Políticos com mandato eram exceção da exceção. Dos 38 candidatos paulistas a deputado em 1982, apenas 5 tinham experiência parlamentar prévia; na disputa para a Assembléia Legislativa eles eram 4 entre 67. Segundo Margareth Keck em "A lógica da diferença" (Ática, 1991), só dois parlamentares ingressaram no que viria a ser o PT em 1979, antes da fundação. Em 1980, uma dissidência do MDB paulista rendeu ao partido seis deputados estaduais (dentre os quais, Eduardo Suplicy); dois deputados federais também ingressaram naquele momento: Aírton Soares e José Eudes, que seriam expulsos cinco anos depois, por votar no Colégio Eleitoral. Raquel Meneguello, em seu "PT: a formação de um partido" (Paz e Terra, 1989), ainda menciona outros três deputados e um senador por Goiás, Henrique Santillo, que também deixaria a agremiação pouco depois. Essa origem externa ao sistema político representativo fez com que o PT mantivesse, durante anos, uma relação tensa com a institucionalidade estatal: embora atuasse como um articulador das demandas dos movimentos sociais em relação aos governos, via com desconfiança e desapreço as estruturas políticas tradicionais. A defesa veemente das formas participativas de democracia em oposição às representativas se devia à origem e à herança ideológica da esquerda que, desde Marx, enxerga negativamente a "democracia burguesa", percebida como mero anteparo à dominação de classe. Isto, somado às próprias dificuldades que o partido enfrentava para conquistar postos governamentais, exacerbava na agremiação o oposicionismo radical, criticando os governos do dia e suas iniciativas, quaisquer que fossem uns e outros: tudo o que se fizesse para atender às demandas populares era sempre pouco, os governantes nunca eram suficientemente honestos, as políticas escolhidas jamais eram as corretas. O curioso é que, apesar disto, o PT contribuiu relevantemente à democratização no país, elevando o patamar de exigências atinentes à prestação de contas, à responsabilidade com a coisa pública e à satisfação das demandas populares - a despeito de seus clamores serem muitas vezes irrealistas ou insinceros. A competição democrática tem este dom: lançar a ambição de uns contra a ambição de outros, freqüentemente rendendo bons frutos. Por isso, o partido sequer precisava ser sincera ou realisticamente democrático: bastava que atuasse de tal forma que a resultante do jogo fosse democrática. Internamente, o PT viveu situação semelhante: nem todas suas correntes e tendências esposavam ideais democráticos, mas a democracia lhes era necessária para que pudessem travar a luta intrapartidária e, por isso, clamavam pelo direito de atuar em correntes internas, por formas participativas de decisão partidária, pela consulta às bases etc. Isto, somado ao fato de que muitos militantes e facções eram - por razões distintas - profundamente críticos das experiências do socialismo real, fez com que o partido propugnasse por um "socialismo democrático", nunca definido com clareza, justamente por ser o PT tão fracionado e plural.

O PT no governo sepulta o socialismo

O charme do PT, escorado no radicalismo oposicionista, na intransigência ética e na autenticidade popular e militante propiciou o crescimento monotônico da legenda. Em todas as eleições expandiu as bancadas parlamentares, até se tornar a maior agremiação na Câmara; conquistou mais e mais prefeituras e governos estaduais, até chegar à Presidência. A cada nova expansão, a experiência de ser governo promoveu importantes transformações no partido: o discurso oposicionista precisou dar lugar ao pragmatismo situacionista; a intransigência ética e ideológica, politicamente ineficaz, cedeu o espaço à conciliação, à negociação e à composição com outras forças; a exigência de políticas perfeitas e do atendimento ilimitado às demandas populares foi substituída por realismo e comedimento no gasto público. Com isto, o partido se tornou menos "ético" e mais "político" - isto é, menos o proclamador de verdades absolutas e mais o concretizador de possibilidades, insatisfatórias por natureza. Bom para a democracia. Ruim para o socialismo. O marxismo nunca propiciou à ação política concreta nada senão catástrofe, autoritarismo ou conversão. O PT, evitando a catástrofe e impedido - pela estrutura democrática do país e por suas contradições ideológicas e políticas internas - de adotar o autoritarismo, converteu-se. Vem se tornando, aos poucos, social-democrata, ocupando esse espaço no espectro ideológico do sistema partidário brasileiro - o PSDB ocupa um centro liberal-social e o conservadorismo anda órfão, já que nem PFL, menos ainda PP, têm demonstrado força para hegemonizar esse campo. Abandonado o marxismo (ao menos na prática) o socialismo converte-se, quando muito, em longínqua referência moral, numa idéia reguladora que só orienta a ação, indicando valores últimos e, por isso mesmo, inconcretizáveis materialmente; torna-se substituível por novas ideologias, mais ajustadas a um mundo diferente do conhecido por Marx. O PT nunca foi oficialmente marxista, nem contou com um marxismo estruturado. Nele conviveram diversos marxismos, contraditórios entre si e mesclados a liberalismo de esquerda, cristianismo, libertarismo pós-moderno e participacionismo - um monte de coisas que apenas conservará importância na medida em que viabilizar políticas públicas. Daí, seu abandono nem ser tão doloroso assim. Daí a imolação do socialismo pela prática de governo ser algo tão natural.