Título: Não aprenderam nada, não esqueceram nada
Autor: Scatolin,Fábio ; Meirelles,Gabriel
Fonte: Valor Econômico, 29/02/2008, Opinião, p. A14

Recentemente, o presidente do Banco Central considerou ser inevitável que o país passe a conviver com déficits em transações correntes nos próximos meses. Na mesma direção, a respeitosa "Conjuntura Econômica", em sua edição de novembro passado, afirma que, dada a benevolência dos brasileiros com a Previdência Social, o déficit nas transações correntes seria inevitável em função da insuficiente poupança doméstica. A solução sensata para a revista seria aceitar a valorização da moeda brasileira, aceitar um pequeno déficit em transações correntes e ainda elaborar uma estratégia para atrair capital estrangeiro. As previsões atuais são que o déficit em transações correntes atinja U$ 6 bilhões já em 2008 e, a persistir a política monetária do Banco Central, a expectativa é de crescimento do déficit nos próximos anos. O objetivo do presente artigo é discutir implicações de um possível crescente déficit em transações correntes do país nos próximos anos. Ao contrário daqueles que acreditam que o país possa sobreviver a déficits crescentes, e que restrições externas ao crescimento são coisas do passado, este breve artigo defende a necessidade de se ter uma política capaz de manter um superávit na conta corrente do país.

A defesa de déficits em transações correntes como forma de viabilizar o crescimento da poupança não é nova na história econômica brasileira. Gustavo Franco, quando na direção do Banco Central no primeiro governo de FHC, justificava o crescente déficit externo com o argumento de que países em desenvolvimento deveriam complementar sua necessidade de poupança com poupança externa. Infelizmente, em janeiro de 1999, após o déficit atingir U$ 33 bi, ou 4,2% do PIB em 1998, o mercado financeiro internacional se recusou a financiar tal déficit e o país foi obrigado a desvalorizar fortemente sua moeda, e remodelar sua política macroeconômica.

Se voltarmos um pouco mais na história, o II PND (1974-1979) também seguiu essa mesma trajetória de déficits crescentes em conta corrente, após o primeiro choque do petróleo. O país, naquele momento, defrontava-se com pelo menos três caminhos a seguir. Hoje sabemos que a estratégia escolhida, de aprofundar a substituição de importações, não foi a melhor opção para o crescimento no longo prazo. Houve um crescente déficit nas transações correntes, que atingiu U$ 10,7 bilhões em 1979, ou 4,8% do PIB, seguido de um novo choque de petróleo em 1979 e de uma alta de juros internacional liderada pelo Banco Central norte-americano. O resultado foi um passivo externo insustentável, seguido de um crescente desequilíbrio doméstico nos anos 80. Somente no começo dos anos 90 este desequilíbrio externo foi equacionado, com o alongamento de prazos e a aceitação de um deságio dentro do Plano Brady. Em verdade, no início de 1985, a situação externa brasileira já tinha melhorado bastante, mas a forma como o Plano Cruzado foi concebido e implementado em 1986, priorizando o ajuste interno em detrimento do ajuste externo, levou outra vez a um déficit nas transações correntes e à subseqüente moratória externa, em 1987.

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Em resumo, por três vezes nos últimos 30 anos o déficit crescente em transações correntes foi fundamental para condenar o país à semi-estagnação. Tal como no passado, com todas as especificidades da economia mundial atual, a situação da economia brasileira hoje reflete um momento especial da economia mundial. O crescimento dos gastos de consumo dos americanos teve como contrapartida a geração de megadéficits em transações correntes "financiados" pela política de compra de dólares por parte dos Bancos Centrais dos países superavitários, particularmente pelo Banco Central chinês. A abundância de dólares que tem beneficiado a nossa economia é em parte fruto de uma construção particular, na qual se combinam elevado crescimento do consumo dos americanos com o acúmulo de reservas em dólares pelos bancos centrais de diversos países. A sustentação de elevados níveis de demanda na economia americana, combinada com o processo de desvalorização do dólar, pode ter impactos inflacionários cuja contenção passaria pela mudança na política monetária americana, tornando-a mais restritiva. Neste sentido, vale a pena a lembrança da política econômica dos EUA na segunda metade dos anos 70. Após o colapso de Bretton Woods, o processo de desvalorização do dólar se deu de forma significativa, ampliando as pressões inflacionárias derivadas dos choques do petróleo. A brutal elevação das taxas de juros americanas em 1979, conduzidas por Paul Volker, mudou completamente a lógica de alocação de capitais de curto prazo em nível internacional. O retorno de capitais para os Estados Unidos acabou tendo como resultado final uma forte valorização da moeda americana, com fortes implicações aos países em desenvolvimento que optaram por déficit em transações correntes.

Se não bastasse a história recente da instável ordem econômica mundial, trabalhos recentes dão suporte ao nosso argumento. Prasad, Rajan e Subramanian, em trabalho publicado no NBER (nov/2007), encontraram evidências de uma significativa correlação positiva existente entre crescimento econômico e superávit no balanço de transações correntes em países em desenvolvimento, não encontrando evidências ainda de que o fluxo de capitais externos para os países em desenvolvimento impulsionasse o crescimento destas economias. Uma das explicações para este resultado seria que a valorização excessiva da moeda local teria levado a uma perda de competitividade dos países em função da perda de dinamismo dos setores industriais exportadores.

A insistência do Banco Central em persistir na trajetória que pode conduzir o país a crescentes déficits em transações correntes sugere que nem todos aprendem com os erros do passado. É impossível não lembrar o que foi dito dos Bourbons quando regressaram ao trono da Espanha, em 1815: "Não aprenderam nada, não esqueceram nada".

Fábio Dória Scatolin, Gabriel Porcile Meirelles e Marcelo Curado são professores do Departamento de Economia da UFPr.