Título: O fim do simples emprego
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 29/02/2008, Cultura, p. 8

Beto Nejme Em qual dessas categorias você define o que é o trabalho para sua vida: um dever, um mal necessário ou um projeto de vida? Se você ficou em dúvida, o melhor é cravar as três alternativas e relaxar. Essa é uma discussão que vem se arrastando ao longo do século XX e parece que vai percorrer ainda boa parte dos próximos anos. Não que seja algo novo. Filósofos da Antiga Grécia, como Aristóteles e Platão, já tinham lá suas idéias sobre o trabalho. O tema vem percorrendo séculos - passando por Adam Smith, Karl Marx, Lutero, Max Weber, Tomás de Aquino - e ainda ocupa a mente dos pensadores modernos. Hoje em dia nas escolas de administração se fala em carreira, não mais em trabalho. Esse é um dos sinais de mudança dos tempos pós-modernos.

A principal razão pela qual se estuda tanto o tema é porque o trabalho vem perdendo a sua importância como fator de identidade pessoal. Em outras palavras, o trabalho está deixando de ser o principal elemento que define o papel do indivíduo na sociedade. Consumo, lazer, relacionamentos afetivos, cuidados com o corpo compõem parte desse novo repertório que amplia o conceito do "trabalho, logo existo". Carreira é algo que não combina com carteira de trabalho. Emprego hoje, para as camadas mais escolarizadas, é ter um projeto. Trabalha-se por prazer em algo que seja desafiador.

As razões históricas e as conseqüências dessa mudança fazem parte da minuciosa pesquisa que Pedro Fernando Bendassolli, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), realizou e que consta no livro "Trabalho e Identidade em Tempos Sombrios". "No século XX o trabalho parece ter se tornado um problema", afirma. "Basta ver a pauta do debate político em torno do tema, que envolve: redução da carga de trabalho, distribuição de renda, políticas de inserção e integração social e desemprego em massa", diz.

O que está por trás do sentimento relacionado à insatisfação é o clima de incerteza e de ambigüidade que hoje predomina nas organizações. A avaliação é de Bendassolli. Esse ambiente afeta sobretudo os profissionais com responsabilidade pela gestão da empresa, para quem sobra o desafio de lidar com um quadro de pressões conflitantes.

"É necessário atrair e manter talentos, embora os vínculos se enfraqueçam. É preciso manter um senso de identidade organizacional e, ao mesmo tempo, promover mudanças. É necessário atuar globalmente e também ser sensível às necessidades locais. É preciso gerar valor para os acionistas e, ao mesmo tempo, atender às demandas sociais", descreve outro professor da FGV-SP, Thomaz Wood Jr., também autor de livro sobre o assunto: "Cuidado, Trabalho". Para ele, o trabalho está no centro dessas ambigüidades e contradições. A saída, afirma o pesquisador, é conhecer melhor como funcionam as organizações para ter uma vida corporativa mais saudável.

Não é preciso voltar muito no tempo para identificar a raiz desse processo de mudanças. Há pouco mais de um década, os escritórios não eram muito diferentes daquilo que se via no passado. O aparelho de fax era o principal sinal de modernidade. A era da tecnologia da produtividade veio com as redes de computadores, blackberrys, notebooks, celulares e outros apetrechos que elevaram a capacidade de trabalho de cada funcionário. Menos pessoas passaram a fazer mais trabalho. A estabilidade na economia, por sua vez, obrigou as empresas a viverem mais do resultado operacional do que dos ganhos financeiros. "Esse é um marco de mudança nos processos de gestão de pessoas", diz o consultor e professor da Fundação Dom Cabral, Pedro Mandelli. "A empresa deixou de ser instituição e passou a ser um negócio. Passou a valer o relatório de custo, a necessidade de ser mais competitivo."

Tal transformação exige uma organização mais ágil e enxuta. "O impacto na qualidade de vida nas empresas foi grande", aponta Mandelli. Como muitas das atividades que a empresa fazia não agregavam valor aos clientes, surgiu a terceirização e com ela o discurso da empregabilidade. "Passou-se a exigir um conjunto de competências e habilidades do funcionário, sem as quais ele se tornava dispensável para a organização", comenta o consultor. A empresa passou a correr atrás de quem é bom. Os profissionais começaram a ter medo e correr em busca de cursos de formação.

Com tamanha pressão, o trabalho tanto pode ser fonte de sofrimento como de prazer. A professora Estelle Morin, fundadora do Criteos (Centro de Pesquisa em Trabalho, Saúde e Eficácia Profissional), de Montreal, identificou os principais fatores que podem fazer do trabalho algo muito gratificante:

- Ser bem realizado, de forma eficaz e eficiente;

- Ter uma função social e trazer algo de positivo para a sociedade;

- Permitir o autodesenvolvimento;

- Proporcionar relações humanas enriquecedoras; e

- Permitir uma remuneração capaz de responder às necessidades do indivíduo.

"Naturalmente, não é fácil atingir tais condições. É um processo que leva tempo e exige esforço e energia, e também alguma sorte", afirma Wood Jr.

Encontrar prazer ou sofrimento no trabalho é algo que depende de cada um. Bendassolli diz acreditar que as pessoas tentam fugir do sofrimento que é o trabalho. Mas, quando entram nas organizações, as empresas institucionalizam o sofrimento. "Por isso há tanta gente querendo abrir o próprio negócio. Mesmo assim, é uma saída duvidosa, porque virão dilemas até maiores do que ser empregado, quando a empresa funciona como grande mãe", alerta.

O consultor Luiz Fernando Giorgi, que há mais de 20 anos atua como executivo, entende, que uma das saídas é buscar um vínculo diferente com as empresas. Diminuir o grau de dependência em relação a elas. "A pessoa precisa ter satisfação não só com o vínculo tradicional e relações de longo prazo. É preciso buscar alternativas. Dar vazão ao espírito empreendedor. Ser mais responsável pelo próprio futuro", observa. Atualmente, com o grande número de fusões e aquisições, os processos de mudanças são grandes. "Há empresas que mudam de presidente nove vezes", completa.

A seu ver, as novas gerações já buscam um novo tipo identificação. Os jovens não querem mais trabalhar em fábricas. Preferem os serviços financeiros e as indústrias criativas. Um fenômeno interessante, associado ao reconhecimento social, são as ONGs, nota Wood Jr. "Há um número crescente de profissionais buscando colocações nessas organizações. É um sinal de busca de um tipo de trabalho que tenha impacto social e, por isso, seja reconhecido pela comunidade", afirma. A geração videogame, como diz Giorgi, tem por outro lado uma expectativa de progressão acelerada. "O problema é que essa mágica não existe nas organizações", observa.

De qualquer forma, essa que hoje é conhecida por geração do milênio procura compatibilizar os valores corporativos com os valores pessoais. Um estudo recente da consultoria PricewaterhouseCoopers com 3 mil jovens recém-graduados da China, dos Estados Unidos e do Reino Unido aponta nessa direção. Essa busca por uma identidade de valores significa que os novos profissionais serão bem mais seletivos na hora de mudar de emprego. Eis aí um novo desafio para as empresas. A pesquisa revela também que os jovens, ao contrário da geração que os precedeu, esperam trabalhar dentro de horários regulares e tradicionais.

Ainda não é nada tão radical quanto ao que a alemã Judith Mair andou pregando no melhor estilo Henry Ford. Para ela, trabalho é trabalho, diversão é diversão. A frustração das pessoas estaria nessa invasão de assuntos profissionais da vida pessoal. "De fato, com as novas tecnologias de informação e comunicação, as empresas ficaram mais gulosas e a fronteira entre o profissional e pessoal ficou diluída", conclui Bendassolli. É mais um ponto em que a ambigüidade se manifesta. "As empresas não querem dar garantia alguma de um vínculo mais permanente, mas invadem a privacidade das pessoas", afirma. Luiz Fernando Giorgi lembra que até atividades de lazer foram incorporadas à rotina do trabalho. O executivo sai para jogar tênis e golfe, mas o objetivo é fazer networking.

Thomaz Wood Jr. ressalta que existe uma grande exigência sobre os executivos, especialmente aqueles em posições de comando. "Arrisco afirmar que é uma barganha faustiana: eles - ou elas - têm status, bons salários e benefícios adicionais; em troca, oferecem seus corações e mentes. Para alguns, é uma boa troca, que os faz felizes. Mas isso não é para todos. Há os que já abdicaram dessa barganha."

lO trabalho deixou de ser o principal fator de identidade na vida das pessoas, mas não perdeu sua importância como fator de inclusão social, quando se olha o conjunto da sociedade. Se as mudanças tecnológicas e de produtividade provocaram incerteza para alguns, também criaram oportunidades para outros. "Com maior acesso à educação e informação, há uma mobilidade maior no meio da pirâmide", afirma Clemente Ganz Lúcio, diretor-técnico do Dieese. "Hoje já não se vêem mais aquelas famílias em que o pai era metalúrgico e os filhos também seguiam a profissão, adotando-a quase como um sobrenome", observa. Para ele, as mudanças estão afetando os sindicatos, que vivem uma crise mundial e precisam repensar seu papel diante de novas frentes de luta e interesses que se abriram.

A crise no sentido do trabalho, apontada no livro de Bendassolli, resulta em novos vínculos entre o empregado e a empresa. "A ambigüidade e a incerteza do ambiente de trabalho levam as pessoas a buscar estratégias de sobrevivência. Uma delas é o que se pode chamar de teatro", diz. Esse comportamento, segundo Wood Jr., é reforçado pelas escolas. "Elas ensinam cada vez mais o jargão da moda e técnicas de comunicação e expressão. Valorizam os professores que dão shows e estão se tornando escolas de atores." Sua crítica engloba também a mídia, que dá grande destaque para comportamentos, roupas e boas maneiras. "Uma certa dose de teatro é necessária na vida social, mas passamos do limite. Isso tem conseqüências negativas para os indivíduos, que ficam obcecados pela própria imagem, e para as organizações, que se tornam ilhas da fantasia, descoladas da realidade", assinala.

Um fenômeno correlato, aponta o professor, é o da valorização de algumas funções, consideradas mais "bacanas", tais como marketing, estratégia e finanças, e a terceirização de tudo o que é considerado secundário ou meramente aborrecido. "Cria-se um sistema de castas, as quais convivem no mesmo ambiente, porém com status e direitos muito diferentes. É uma condição difícil de gerir, mas não há solução à vista, apenas meios para mitigar os efeitos negativos."

O consultor Giorgi vê por trás desse quadro uma crise de liderança nas empresas. Para ele as corporações se tornaram muito frias e exigentes. "Há pouca identidade. Elas têm nome, marcas fortes, mas carecem de lideranças fortes. O tempo de permanência dos líderes foi reduzido. Normalmente o profissional se reporta a três chefes que nem sempre são os mesmos", observa. As grande corporações, assinala, se transformaram em máquinas de sugar a capacidade de relações humanas. Tudo é cobrança e controle. "As pessoas na verdade não se conhecem e se comunicam pelo messenger."

O professor Thomaz Wood Jr., por sua vez, vê a questão de liderança e líderes como "temas fetiche", geralmente vistos como fonte e solução de todos os problemas. "Seria mais adequado pensar nos quadros profissionais, de forma geral", avalia. Para ele, o problema é a formação inadequada. Mesmo com a multiplicação, nas últimas duas décadas, de MBAs, cursos de extensão, universidades corporativas. Wood Jr. avalia que a qualidade, em termos de conteúdo e pedagogia, é insuficiente. "Os professores têm qualificação precária, os alunos têm mais interesse no diploma do que no aprendizado e as escolas estão mais preocupadas com os lucros do que com o ensino. Uns fingem que ensinam, outros fingem que aprendem", comenta.

Os números sobre educação executiva no Brasil impressionam, mas a qualidade assusta, segundo ele. "Depois de alguns anos de crescimento, as empresas estão sentindo na pele a falta de quadros qualificados. E assim seguimos", resigna-se.

As empresas têm um grande desafio pela frente: fazer que haja coerência entre o discurso que pregam e sua prática diária, na opinião de Giorgi. "Hoje, o mercado de capitais trouxe um elemento a mais de estresse. O trabalho gira em torno do comportamento das ações na Bolsa. Sem um ambiente adequado será muito difícil reter os talentos", declara. Para o indivíduo que busca a realização ou sentido no trabalho, não há uma única receita. Esse tampouco é o objetivo do livro de Bendassolli, embora explique e jogue luz sobre várias coisas.

Uma palavrinha mágica, muito empregada atualmente, é motivação. Mas, segundo o pesquisador alemão Burkard Sievers, lembrado pelo professor Wood Jr., motivação é o substituto pobre para a falta de sentido no trabalho. Resta então a sabedoria zen: "Quem é mestre na arte de viver distingue pouco entre o trabalho e o tempo livre, entre a sua educação e a sua recreação. Busca simplesmente uma visão de excelência em tudo o que faz, deixando que os outros decidam se está trabalhando ou brincando. Ele pensa sempre em fazer as duas coisas ao mesmo tempo."

"Trabalho e Identidade em Tempos Sombrios" - Pedro Fernando Bendassolli

Idéias & Letras, 312 págs., R$ 33,00

"Cuidado, Trabalho" - Thomaz Wood Jr.