Título: Perigos de recessão e inflação pairam sobre os EUA
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Fonte: Valor Econômico, 03/03/2008, Internacional, p. A11

A história mostra, entretanto, que os dois males quase nunca ocorrem ao mesmo tempo. Isso explica por que o banco central americano, o Federal Reserve, tem preferido atacar o primeiro em vez do segundo. Autoridades do Fed crêem que quem diz que ele está flertando com estagflação - ausência de crescimento combinada com inflação - interpretam erradamente as lições dos anos 70, quando os EUA passaram por essa combinação. O maior teste do espírito antiinflacionário do presidente do Fed, Ben Bernanke, pode ser não a maneira como ele corta juros durante o enfraquecimento da economia, mas como os eleva depois.

A semana passada trouxe uma saraivada de más notícias para Bernanke. A venda de casas novas e a confiança do consumidor caíram, ao mesmo tempo em que subiram os pedidos de seguro-desemprego. Enquanto isso, o Departamento de Comércio divulgou que o índice de gastos com consumo pessoal, o índice de preços preferido pelo Fed, subiu 3,7% em janeiro em relação a um ano atrás, a segunda maior alta desde 1991. Ainda mais preocupante é que, mesmo excluindo-se alimentos e combustíveis, o núcleo da inflação passou de 1,9% em agosto para 2,2% em janeiro. Ficou acima da faixa de 1,5% a 2% que os diretores do Fed consideram como estabilidade de preços em 37 dos últimos 46 meses.

Então, por que o Fed se preocupa mais com crescimento do que com inflação? Primeiro, ele acha que os preços de matérias-primas explicam as altas, não só na inflação como no seu núcleo: a alta do petróleo "passou" para outros produtos e serviços. O núcleo da inflação subiu e caiu com os combustíveis entre o início de 2006 e meados de 2007 e o Fed acha que o mesmo deve estar ocorrendo agora. Se os preços de combustíveis e alimentos pararem de subir - não é preciso que caiam -, a inflação geral e o núcleo também cairão.

Por enquanto, as commodities seguem subindo: trigo, petróleo e ouro atingiram preços nominais recordes na semana passada. Mas os diretores do Fed não acham que as altas mais recentes podem ser justificadas pela oferta e demanda. A forte demanda da China não é nova e já deveria ter sido incorporada aos preços há muito tempo. A explicação mais provável é que os investidores, talvez preocupados com a postura dócil do Fed ante a inflação, estejam pondo dinheiro em fundos de commodities e moedas estrangeiras como proteção contra a inflação. Esses temores podem se auto-alimentar, com os custos de alimentos, combustíveis e importados atingindo os preços ao consumidor. Mas ganhos de preço especulativos não podem ser sustentados se os fundamentos não lhes derem suporte.

Para que a atual taxa de inflação continue alta, o Fed acredita que ela terá de permear salários e preços. Por enquanto, pesquisas indicam que os consumidores não aumentaram muito suas expectativas de inflação. Os salários e benefícios só subiram 3% no quarto trimestre do ano passado em relação ao do ano anterior, uma desaceleração em relação a 2006, apesar de o desemprego ter estado abaixo dos 5% durante quase todo aquele período. Para que haja uma espiral de preços e salários, os salários têm de colaborar.

Os salários americanos são até menos propensos a acelerar se o desemprego, hoje em 4,9%, subir para 5,25% este ano e só cair gradualmente para 5% até 2010, como tem previsto o Comitê de Mercado Aberto do Fed, que define a política monetária. Isso implica três anos de desemprego acima da taxa considerada "neutra" pelo comitê, de 4,9%, o que significa constante pressão de baixa para a inflação.

Há quem desconfie da noção de que desemprego mais alto reduz a inflação, mesmo no Fed. "Basta lembrar os anos 70, quando tivemos tanto desemprego alto como alta inflação, para entender que falta de crescimento econômico e baixa inflação nem sempre caminham juntos", disse Charles Plosser, presidente de um dos 12 bancos centrais regionais. o de Filadélfia, no início do mês passado.

Mas a inflação caiu, sim, depois das recessões americanas de 69-70, 73-75 e 1980. Na verdade, pesquisas do Fed concluíram que um dado nível de desemprego tinha o dobro de impacto sobre a inflação naqueles anos do que hoje.

O Fed aumentou juros quando a inflação subiu, e as conseqüentes recessões derrubaram a inflação. Mas devido a pressões políticas, ignorância, ou ambos, o Fed não podia tolerar desemprego alto por muito tempo e logo tirou o pé do aperto monetário, fazendo a inflação repicar para um nível mais alto do que estava no começo. Trabalhadores e empresas logo se ajustaram à inflação mais alta.

Da mesma forma, críticos dizem que o Fed demorou demais para reverter as taxas superbaixas de 2001 a 2003, alimentando assim uma bolha no mercado imobiliário (se não inflação galopante), cujo colapso agora ameaça a economia. William Poole, presidente do banco central regional de St. Louis, foi um dos primeiros que participaram da decisão a repudiá-la. "Olhando agora (...) não é difícil argumentar que o (Fed) demorou demais para aumentar a meta dos fundos federais depois de a derrubar para 1% em 2003".

Mesmo diretores do Fed que não compartilham dessa visão concordam que tanto esse episódio quanto os anos 70 são argumentos para reverter rapidamente os cortes de juros quando a crise passar. É mais fácil falar do que fazer. É improvável que o Fed enfrente um panorama tão obviamente positivo no curto prazo e uma reversão dessas, em ano de eleições nos EUA, enfrentaria intensa pressão política. Se o Fed vai reverter seu curso monetário "na hora certa" só ficará claro dentro de uns cinco anos, disse Poole.