Título: Vendas antecipadas limitam ganhos com soja no Mato Grosso
Autor: Cruz, Patrick
Fonte: Valor Econômico, 06/03/2008, Agronegócios, p. B14

"É, pois é". Giuseppe Castelli produz soja em Jaciara, no Mato Grosso. A soja das cotações recordes, da demanda mundial ascendente, base da produção brasileira de biodiesel, principal produto das exportações do agronegócio nacional, grão que tem se mantido em alta mesmo em pleno período de colheita. Castelli enche os pulmões, solta o ar, deixa cair os ombros e, com esse gestual, fala por seus 740 hectares e por grande parte de todos os hectares ocupados pela soja no Estado. "É, pois é".

A reação do produtor ilustra um sentimento generalizado no Mato Grosso, maior produtor de soja do país. O cenário de soja com preços em alta, demanda aquecida e oferta apertada seria o pano de fundo ideal para comemorações entusiasmadas. Não para todos. No Mato Grosso, mais da metade da safra foi negociada com preços anteriores aos do aumento vertiginoso das cotações. O movimento refletiu as dificuldades dos agricultores em financiar o plantio da safra 2007/08, em razão do elevado endividamento acumulado nas duas temporadas anteriores. "É, pois é".

Ainda que não tenham perdido dinheiro, produtores que preferiram a venda antecipada mostram um indisfarçável sorriso amarelo de quem poderia estar ganhando muito mais dinheiro do que efetivamente está.

Com um argumento um pouco mais dilatado, um produtor de Dom Aquino, no sul do Estado, faz coro com a resignação lacônica de Castelli. "A safra está boa, muito melhor que a passada". Entre uma declaração e outra, o produtor tira o boné, coça a cabeça e emenda: "o problema é que muita gente travou o preço lá atrás. Tem até quem pense em não entregar soja para tentar vender com preço melhor, mas isso é arriscado porque a gente pode ficar sem crédito para a próxima safra".

Os produtores utilizam o "travamento" de preço para garantir uma margem mínima e também para obter insumos com preços mais em conta. As tradings garantem a entrega de adubos e defensivos sob a promessa de que receberão a soja no preço acertado. Em 2007/08, cerca de 70% da soja foi vendida antecipadamente no Mato Grosso, bem acima dos 50% do ciclo 2006/07. Como comparação, no Paraná, segundo maior produtor, a venda antecipada passou de 40% para 50% de uma safra a outra.

Os preços da soja ultrapassaram os US$ 23 por saca, mas a maior parte dos travamentos ocorreu com US$ 12 a US$ 13 por saca - houve casos de acordos fechados com preços abaixo de US$ 10. "Os produtores vinham de duas safras problemáticas. Quando a saca bateu em US$ 10, todo mundo travou o preço", diz André Debastiani, consultor da Agroconsult.

Saliente-se que, a não ser por casos eventuais de prejuízos, pouca gente perdeu dinheiro nesta safra. Dívidas passadas, ainda que não tenham sido sanadas, puderam ser melhor administradas, e as margens dão fôlego para a próxima safra de verão. "Mesmo que não acompanhe, na mesma proporção, o aumento da demanda global, o plantio vai crescer [na próxima safra]", afirma Debastiani.

As ameaças de não entrega não têm se efetivado, de acordo com a Associação de Produtores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja). Ainda assim, o risco paira sobre o mercado. As quebras de contrato não deverão ser generalizadas, mas casos pontuais são, sim, esperados, segundo fonte de uma grande esmagadora com operações no Estado.

Há os que prefiram engolir seco e, na figura de linguagem recorrente no campo, honrar o fio do bigode. "Eu produzo desde 1983. A gente cria um nome com o passar dos anos, e é um tiro no pé jogar tudo para o alto depois de tanto tempo. Temos ouvido de produtor que não vai entregar a soja, mas prefiro entregar para não ter problemas no futuro", diz Carlos Henrique Werner, que semeia seus 750 hectares de soja em Poxoréu.

A ferramenta da venda antecipada acabou frustrando muitos produtores, mas não deverá ser abandonada nas próximas colheitas. Estimativa da Agroconsult para a safra 2008/09 aponta 80% de vendas antecipadas. A concretização desses números só deverá ser melhor observada quando começar a colheita da safra americana.

A venda antecipada é particularmente relevante para o Estado, que concentra no complexo soja grande fatia de sua receita. Em janeiro, os embarques de soja em grão cresceram 104,8%, para US$ 130,6 milhões, e os de óleo subiram mais de 2.000%, para US$ 31,1 milhões - as exportações totais do Estado foram de US$ 439,4 milhões. Os embarques de farelo caíram 25,5%, a US$ 47,1 milhões.

A Aprosoja já revelou, sem detalhes, que quer buscar uma "alternativa de crédito" com tradings e outros financiadores para evitar a frustração de vender o grão na baixa num momento de cotações recordes, como o da atual safra. O cenário torna-se mais sensível para os produtores do médio norte, que enfrentam restrições ambientais para o aumento do plantio. Nenhuma cidade do sul do Estado, região visitada pelo Valor, está na lista das 36 campeãs de desmatamento elaborada pelo governo.

Em plena temporada de produção recorde e, mesmo assim, preços nas alturas, não dá para dizer que tudo é frustração. As chuvas no fim do ano atrasaram o plantio, mas o clima tem sido descrito pelos produtores como ideal - ainda que as chuvas atrapalhem a colheita em algumas regiões. "Agricultor é mesmo chorão. Sempre vai reclamar de alguma coisa", diz o produtor Carlos Werner, em uma espécie de mea culpa em nome da classe.

Nas visitas às propriedades feitas pelo Rally da Safra, reclamações sobre as desvantajosas vendas antecipadas e a disparada no custo dos fertilizantes eram entremeadas por um incontido orgulho com a lavoura repleta. "Teve talhão em que conseguimos colher até 72 sacas [por hectare]. No ano passado, era área de 60 [sacas por hectare]. E o pessoal da vizinhança está colhendo mais de 60 sacas onde antes não dava 50", diz o gerente da Fazenda Kayabi, em Primavera do Leste, de prenome Ricardo. "Está bem melhor este ano".

As rodas de conversa entre os produtores costumam ter números soltos no diálogo ("é 55", "não é menos de 60") que indicam a produtividade de soja obtida por hectare. Informalmente, e com o cuidado para que os colegas não os ouçam, fazem o alerta para que se faça a distinção entre produtividade e "produtivaidade", uma corruptela para não fazer má figura diante de produtores com melhor desempenho no campo.

Mesmo que a "produtivaidade" infle os números, é grande a tendência de que eles superem os da safra passada. A Conab prevê produtividade de 50 sacas por hectare no Mato Grosso, mas a estimativa prévia da Agroconsult é de que o desempenho será superado. A projeção da consultoria com os dados obtidos nas visitas de campo será anunciada na segunda-feira.

Sinais mais aparentes também podem ser usados como termômetro para mensurar a melhora da renda. Em Campo Verde, um produtor dá a dica: "é só ir para a cidade e ver quanta caminhonete sem placa está circulando. É tudo carro novo". É, pois é. (Colaborou Fernando Lopes, de São Paulo)

O jornalista viajou a convite do Rally da Safra.