Título: Grave crise diplomática nas vizinhanças do Brasil
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2008, Opinião, p. A22

A região amazônica que delineia as fronteiras de Venezuela, Brasil, Colômbia e Equador é uma terra de ninguém de narcotraficantes, guerrilheiros que acobertam o plantio e a comercialização da cocaína, contrabandistas. Desde sábado é também o palco para um pouco plausível confronto armado envolvendo a Colômbia e o Equador - com ou sem a presença do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, que diz ter enviado dez batalhões de prontidão para a divisa colombiana. A eliminação do segundo homem forte na hierarquia das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc), Raúl Reyes, feita por membros do Exército colombiano em território equatoriano, exacerbou tensões entre governos política e ideologicamente rivais na região. Desarmar os ânimos é a tarefa em que se empenhavam ontem os governo brasileiro, chileno e argentino, com resultados ainda incertos.

Há ingredientes suficientes para desagradar a todas as partes no episódio. A ação armada em território do Equador foi feita sem a comunicação antecipada ao presidente do Equador, Rafael Correa, um populista que se espelha no exemplo de Chávez. Há poucas dúvidas de que Álvaro Uribe violou o território e a soberania equatoriana. Uribe, um direitista hostilizado pelos vizinhos e que conta com o apoio e as armas do governo americano para combater o narcotráfico, não tem recuado de ações duras contra as Farc, até mesmo porque planeja um terceiro mandato presidencial. Tem popularidade, apesar das acusações de que tem o apoio dos grupos paramilitares, a quem trata com condescendência.

A ação de Uribe deu o pretexto de que precisava Chávez para demonstrar mais uma vez seu gosto por gestos irresponsáveis e sua aliança com as Farc. Após chamar Uribe de "lacaio" e "chefe de um narcogoverno", o presidente venezuelano manifestou seu pesar pelo "assassinato covarde de um bom revolucionário". Na retórica, teve a companhia de Fidel Castro, que condenou, no mesmo tom, os "planos genocidas do imperialismo ianque". Chávez enviou tropas para a fronteira, assim como fez Correa, e os três governos estão à mercê do acaso. Qualquer provocação das Farc bem que pode iniciar uma absurda guerra entre os países. A recente corrida armamentista da Venezuela tinha como perspectiva enfrentar situações como essa - mais uma afronta dos EUA, no vocabulário chavista.

É difícil prever o que pode acontecer com três presidentes "duros" envoltos em um duelo por enquanto verbal. O governo de Uribe enviou desculpas ao Equador, apontando que jamais fora intenção das forças colombianas ferir sua soberania. Por outro lado, a Colômbia manobra com ações que parecem destinadas a acirrar animosidades e levantar mais suspeitas por parte de seus adversários. O general Oscar Naranjo, chefe da Polícia Nacional da Colômbia, disse que nos computadores apreendidos de Reyes há indícios de "relacionamento estrutural das Farc tanto com a Venezuela quanto com o Equador". Essas relações, para o general, "afetam a segurança nacional". De Chávez, o general disse que os documentos capturados registram que o presidente venezuelano deu US$ 300 milhões às Farc. Naranjo afirmou também que o ministro da Segurança do Equador, Gustavo Larrea, estava em interlocução constante com a guerrilha.

Ao apontar para Rafael Correa e Chávez como aliados das Farc, com base em uma documentação que pode ser vista com bastante suspeição, a Colômbia não só pode estar tentando legitimar suas ações de invasão de territórios vizinhos como também preparar o terreno político para novas operações do gênero. Nos cálculos de Uribe certamente entra em conta o apoio tácito dos EUA diante de qualquer conflito armado com Chávez.

O Brasil é o principal mediador da crise diplomática. O presidente Lula conversou ontem com Uribe e Correa, enquanto a presidente chilena, Michelle Bachelet, pregava conciliação. O Itamaraty traçou uma linha de ação pragmática. Condenou a violação territorial por parte da Colômbia e deixou sabiamente Chávez de lado, já que ele não é uma parte legítima na crise - posição similar à da diplomacia americana. Depois, jogou a resolução do conflito para o âmbito da Organização dos Estados Americanos, propondo uma comissão de investigação, e reafirmou não ter "posição doutrinária" em relação aos países em questão.