Título: Diversidade entre o Pacífico e a cordilheira
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 04/03/2008, Consumo, p. D6

Ledo engano considerar que os vinhos chilenos são todos iguais, como é comum ouvir-se por aí. Talvez, e mesmo assim com reservas, isso seja válido para a gama de rótulos mais comerciais, de grande volume, onde grandes grupos vinícolas locais compram uvas e/ou vinhos de produtores dispersos, processam e os comercializam. Ainda que isso seja uma situação real, e, diga-se de passagem, comum, tanto lá quanto nos demais países dominados por negociantes de porte, caso da Austrália, ela ocorre num segmento particular, de vinhos base. Nessa faixa, e assim deve ser entendido, o objetivo é se ter um vinho despretensioso para o dia a dia.

O Chile tem uma grande diversidade de terroirs que vêm gradualmente sendo explorados, com mais ênfase desde meados da década passada. Isso não é conseqüência de uma ação isolada, mas de uma feliz somatória delas. Em linhas gerais os vinhateiros abandonaram a cultura vigente até o início dos anos 90, quando, aproveitando as facilidades que a natureza pródiga lhes propiciava, abusavam da quantidade produzida, o que resultava em vinhos triviais, sem personalidade. Para tanto contribuiu uma nova geração de enólogos - os pioneiros e seus seguidores - que hoje ocupam postos chave no cenário vinícola chileno. Por outro lado, vale ressaltar, também, o importante empurrão à mudança da mentalidade local a entrada, na época, de vinícolas e investimentos estrangeiros, que trouxeram junto técnicos e expertise no assunto.

O enólogo dos Viñedos Emiliana, Antonio Bravo von Bischoffshausen, abraçou a causa da biodinâmica com paixão Outro fato que merece ser exaltado nessa transformação vinícola do Chile foi o "descobrimento" em 1982, pelo enólogo Pablo Morandé, do Valle de Casablanca, região situada a nordeste de Santiago. Por não ter a proteção da Cordilheira da Costa, uma cadeia montanhosa paralela e mais baixa que a Cordilheira dos Andes, Casablanca fica bem mais próxima e exposta ao Pacífico, recebendo a brisa fresca que vem de suas águas caracteristicamente frias. O sucesso de Casablanca, ainda que tardio - se deu já na década de 90 -, foi uma abertura fundamental, que ensejou a abertura de novas fronteiras com projetos em áreas que ninguém imaginaria alguns anos antes, assim como encorajou produtores estabelecidos em regiões tradicionais a estudar melhor seus terroirs.

Assim, estreito e comprido, o Chile é influenciado decisivamente pelo oceano Pacífico de um lado e pela cordilheira dos Andes de outro. Essa condição tem efeitos altamente positivos para a cultura da vinha, ao criar uma diversidade de micro climas dependendo de quão distante se está do mar ou da cordilheira. Além disso, diferenças de pressão provocam brisas vindas de ambos os lados, com ótimos resultados na prevenção de pragas e doenças, na manutenção de temperatura em patamares convenientes, e, principalmente, no fato de acarretar grande amplitude térmica que possibilita longos períodos de maturação das uvas. Como comparação, enquanto a média em outros lugares é de 100 dias entre a floração e a colheita, no Chile esse período pode chegar a 150 dias. Um melhor entendimento desses fenômenos tem feito com que os produtores chilenos plantem as castas de uva mais adequadas a cada um deles e possam ir mais fundo na busca pela identidade de seus vinhos.

Essa nova realidade foi particularmente sentida durante a série de visitas a vinícolas do Vale do Rapel, que se seguiu ao roteiro pelo Vale do Limari, comentado nesta coluna semana passada. Caminha-se para o consenso que, de um modo geral, o clima mais quente e o ciclo vegetativo mais longo da videira na área de Rapel permite alcançar belos índices de maturação para a Carmenère, casta difícil e emblemática do Chile. Maipo, por sua vez, região vizinha norte, continua se notabilizando pela excelência de seus Cabernets Sauvignons.

Embora o nome Rapel esteja bem implantado, ele, na realidade, vai perdendo espaço como referência nos rótulos em favor de suas três sub-regiões, bem definidas e com características distintas: Cachapoal, Colchágua e Curicó, um conjunto que se situa entre 80 e 190 quilômetros ao sul de Santiago.

A primeira se compõe de uma faixa situada quase aos pés dos Andes, a Alto Cachapoal - relativamente mais fria e com baixo índice pluviométrico -, onde estão instaladas a maioria das vinícolas da área, caso da Altair, Anakena, Château Los Boldos e Morandé. Há, por isso, uma certa semelhança de estilos e alguma preferência por Cabernet Sauvignon e Merlot. Um pouco mais para o centro, porém, protegidas da influência marítima, onde estão Peumo e Las Cabras, as temperaturas sobem e privilegiam a Carmenère. A primeira, a propósito, é tida como uma das regiões de ponta para a variedade.

Em Colchágua, as bodegas estão mais espalhadas - daí uma maior diversificação -, desde próximas à cordilheira (Casa Silva, Santa Helena, e Cono Sur), até as mais a oeste, nas cercanias de Marchigüe e Lolol, recebendo as brisas do mar (Los Vascos e Errázuriz Ovalle). Na parte central, mais quente, destacam-se produtores reconhecidos, em especial pela Carmenère (também Syrah), como Neyen, Casa Lapostolle e Montes, os três localizados no trecho mais badalado do Chile na atualidade, o anfiteatro de Apalta. Outros produtores de renome têm parcelas na área, como a Santa Rita, onde ela produz o premiado Pehuen.

Finalmente, Curicó, uma área mais úmida, onde despontam os nomes de Viña San Pedro, segundo mais grupo vitivinícola do Chile, e Miguel Torres, uma das vinícolas mais conhecidas na Espanha e uma das primeiras estrangeiras a acreditar no potencial chileno, ali se fixando em 1979.

Abaixo alguns comentários sobre as vinícolas na ordem em que foram visitadas e os destaques entre os vinhos degustados:

Santa Helena (importado pela Interfood; 11 6602 7255): fazendo parte do grupo San Pedro desde 1995, mas levando vida independente, a vinícola se especializava em vinhos honestos, acessíveis, caso do Selección Del Diretorio. Com a compra da Selentia, uma bodega antiga acompanhada de velhos vinhedos, tudo restaurado, ela iniciou um projeto de vinhos sofisticados, Vernus, Notas de Guarda e o Top de Linha D.O.N., iniciais de De Origem Noble. Um bom trabalho do Enólogo Miguel Rencoret. Os vinhos são bem feitos, em evolução, típicos, e convincentes. Da extensa degustação, com várias verticais, vale destacar:

- Premium Varietal Cabernet Sauvignon 2006

- Seleccion Del Diretorio Syrah 2005 (da região de Apalta)

- Vernus Blend 2004

- D.O.N. 2003

- D.O.N. 2005

Cono Sur (Wine Premium/Expand; 4613 3333): Sob a condução brilhante do enólogo Adolfo Hurtado, a Cono Sur tem uma linha moderna e consistente, em particular nos brancos e no Ocio Pinot Noir. Em 2000 partiu com um projeto orgânico numa de suas parcelas e está em busca do certificado.

Destaques:

- Chardonnay 20 barrels 2006

- Ocio Pinot Noir 2006

- Cabernet Sauvignon 20 Barrels 2006

Viñedos Emiliana (Magna; 11 2113 0999): fundada em 1986 sob a denominação Santa Emiliana, a vinícola mudou de nome e de objetivos. De seus 1500 hectares de vinhas, espalhados pelas melhores áreas do país, a Emiliana faz um trabalho esmerado. A cantina, construída em 2002 segue esses preceitos. Começando pelas linhas base, Varietal, Reserva e Novas, até a gama superior, Adobe, Coyam, com certificado orgânico IMO, e o G, biodinâmico pelo rigoroso organismo Demeter. Por trás desses três vinhos está o mais respeitado consultor do setor no Chile, Alvaro Espinoza, e o enólogo da casa, Antonio Bravo von Bischoffshausen, que abraçou a causa com paixão. Destaques:

- Novas Chardonnay 2006

Novas Winemaker´s Selection 2005

- Adobe Carmanère 2007

- Coyam 2005

- G 2003

Neyén (Casa do Porto; 11 3061 3003, 31 3286 7077): dos 125 hectares de vinhas, situadas na prestigiada região de Apalta, a Neyén preserva uma parcela de 30ha plantada em 1890. A primeira colheita foi em 2003. Com os novos vinhedos em produção, as quantidades vêm aumentando - em 2007 foram produzidas apenas 3500 caixas - da mesma forma que a qualidade, que já era boa ganha mais consistência. A mescla pode variar, mas normalmente fica em torno de Carmenère e Cab. Sauvignon em partes iguais. A garantia está nas mãos do consultor apaixonado pelo projeto, o francês agora morando no Chile, Patrick Valette. Destaques:

- Neyen 2004

- Neyen 2005

- Neyen 2006

Casa Lapostolle (Mistral; 11 3372 3400): numa construção nova e imponente, a prestigiada vinícola está situada no centro da área de Apalta, rodeada por seus 180 hectares de vinhas, alguns de 1920 - ainda tem 60 ha em Casablanca, onde produz seus brancos, e 90 ha em Cachapoal. Tudo é conduzido organicamente, e esperam conseguir o certificado em 2011. Além de seu ícone, o Clos Apalta, moldado com boa base de Carmenère, sistematicamente entre os melhores do ano no Chile, a Casa Lapostolle oferece bons Chardonnays (Sauvignon Blanc decepciona) e Merlots. Michel Rolland a assessora desde sua inauguração e tem exclusividade com ela para o Chile.

- Chardonnay 2006

- Cuvée Alexandre Merlot 2006

- Cuvée Alexandre Cab Sauvignon 2006

- Clos Apalta 2005

Viu Manent (Hannover; 51 3337 3890): estabelecida em 1936 na região de Colchagua, a vinícola permanece na mãos da família até hoje. Do total de 300 hectares de vinhedos, uma parcela, a "cuartel nº 4" tem um significado especial. São parreiras entre 60 e 80 anos de Malbec, a especialidade da casa e responsável pelo top de linha o Viu 1. Vale comparar com bons argentinos, inclusive para perceber que a mesma casta plantada em lugares distintos dá resultados diferentes. O resto da linha tem altos e baixos. Destaques:

- Secreto Viognier 2007

- Cabernet Sauvignon La Capilla Estate 2005

- Malbec San Carlos Estate 2006

- Viu 1 2005

Viña San Pedro (World Wine - La Pastina; 3315 7477): dentro do processo de modernização das vinícolas chilenas, a San Pedro começou buscando um cabeça para comandar. Estava precisando. Trouxe, em 2006, o enólogo Marco Puyó, que trabalhava na Los Vascos (do grupo Lafite Rothschild) e contratou o respeitado consultor americano Paul Hobbs. Os vinhos degustados já demonstram o acerto na mudança, estando mais puros e bem definidos. Destaques:

- Riesling Castello de Molina 2007

- Sauvignon Blanc Castillo de Molina 2007 (do Valle de Elqui)

- 1865 Cabernet Sauvignon 2006

- Cabo de Hornos 2005

Miguel Torres (Reloco; 21 2580 0350): grupo vinícola que primeiro investiu no Chile, a Miguel Torres, no entanto, ficou algum tempo à deriva. Voltou com força nesta década, inclusive com um novo projeto iniciado em 2003, na zona de Empedrado, uma zona montanhosa - os vinhedos foram plantados em terraços, lembrando Penedés - na região do Maule, próximo à costa. A linha tradicional também foi modernizada. Seu antigo top, o Manso de Velasco, um 100% Cabernet Sauvignon composto a partir de um único vinhedo com parreiras plantadas há 110 anos, agora tem a companhia do Conde de Superunda, de raízes espanholas e chilenas - tem 65% de Tempranillo, 15% de Monastrell, ambas típicas da Espanha, e o restante Cabernet Sauvignon e Carmenère. Destaques:

- Santa Digna Cabernet Sauvignon 2005

- Cordillera 2004

- Manso de Velasco 2005

- Conde de Superunda 2003

Anakena (Mercovino; 16 3635 5412): relativamente jovem - fundada em 1999 pelo empresário Felipe Ibañez - a vinícola já tem 450 hectares de vinhedos bem posicionados, caso de Ninquén, em Colchagua, e Leyda, e complementa com uvas compradas. Uma certa irregularidade é compreensível, mas potencial existe. Destaques:

- Viognier Single Vineyard 2007, Rapel

- Merlot Reserva 2006

- Ona Syrah 2005