Título: Xeque-mate em Mubarak
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 05/02/2011, Mundo, p. 24

Pelo menos 500 mil manifestantes tomaram ontem a Praça Tahrir, no centro do Cairo, e participaram da chamada ¿Sexta-feira da Partida¿. Entre preces direcionadas a Meca e gritos de ordem, a multidão não teve a chance de festejar a renúncia de Hosni Mubarak. No entanto, o destino do presidente que comandou o Egito durante 29 anos pode estar sendo traçado a 9.209km do Cairo, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington. Farto da violência que deixou mais de 300 mortos e 5 mil feridos, e temeroso por uma possível islamização do governo egípcio, os Estados Unidos praticamente decretaram o fim do regime. Pela primeira vez desde o início da crise, em 25 de janeiro, o presidente Barack Obama foi explícito e direto. Ele disse que Mubarak deveria ¿ouvir¿ os manifestantes que pedem sua renúncia imediata, embora não tenha insistido numa demissão sumária. ¿Ele tem que ouvir as pessoas e escolher o caminho a ser seguido, de maneira ordenada, signiticativa e séria¿, declarou Obama. ¿Creio que o presidente Mubarak se preocupa com seu país. Ele é orgulhoso, mas é também um patriota¿, acrescentou. Mais cedo, o americano havia confirmado que os EUA já discutem a troca de comando no Egito. Uma das opções seria conceder o poder, de forma interina, ao vice-presidente Omar Suleiman.

A intervenção dos Estados Unidos coloca em xeque a aliança egípcio-americana, iniciada nos anos 70 pelos presidentes Anwar Sadat e Jimmy Carter. Os sinais da intrusão de Washington repercutiram na capital do Egito. O chefe da Liga Árabe, Amr Mussa; e o ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Mohamed ElBaradei, expressaram o desejo de se candidatarem às eleições presidenciais de setembro. A Irmandade Muçulmana, principal força da oposição, disse se reunir com Suleiman apenas no caso de uma saída de Mubarak. Dois pequenos partidos, o Wafd (liberal) e o Tagammou (esquerda), disseram ¿sim¿ ao diálogo.

Capital político Em entrevista ao Correio, o libanês Nadim Shehadi ¿ analista do Instituto Real de Assuntos Internacionais da Chattam House (em Londres) ¿ acredita que a postura de Obama pode lhe causar prejuízos políticos. ¿Ele está se apresentado como um aliado não confiável. Obama tinha que ficar o mais distante possível da crise, sem, no entanto, dar a impressão de que a ignora¿, disse. Shehadi teme que os protestos ganhem o tom de antiamericanismo. ¿Os manifestantes de Tahrir têm lutado por seus direitos democráticos. Os protestos nada têm a ver com sentimentos anti-EUA¿, lembrou Shehadi.

A União Europeia (UE) apressou-se em intensificar a pressão sobre Mubarak e demonstrar apoio à postura norte-americana. O bloco inaugurou ontem uma cúpula, em Bruxelas, com esses objetivos. Os líderes europeus exortaram o presidente do Egito a iniciar rapidamente uma transição política. ¿Mubarak perderá toda a credibilidade que lhe resta aos olhos do mundo¿, alertou o premiê britânico, David Cameron. Por sua vez, o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, defendeu o egípcio, qualificando-o como ¿um homem sábio¿.

A ¿Sexta-feira da Partida¿ ocorreu de forma pacífica. ¿Meio milhão de pessoas ocupa a Praça Tahrir e é algo lindo. As pessoas cantam, dançam e brincam¿, contou ao Correio, por telefone, o egípcio Tarek Shalaby, de 26 anos. Acampado no local desde terça-feira, Tarek começa a duvidar da renúncia de Mubarak. ¿Há uma chance muito pequena de isso ocorrer, pois o presidente teme que tal gesto seja interpretado como desespero¿, comentou. ¿Não haverá diálogo. Mubarak tem que sair¿, reafirmou. Mussa compareceu à Praça Tahrir e admitiu que pode concorrer à sucessão. ¿Por que dizer não?¿, perguntou. ¿Estou a serviço de meu país¿ Estou pronto para servir¿, concluiu. ElBaradei, por sua vez, afirmou ¿não ter objeções¿ a se apresentar como candidato.

Aiatolá clama por islamização

O aiatolá Ali Khamenei, líder supremo do Irã, pediu ontem que os egípcios adotem um regime islâmico em seu país, ao criticar o presidente Hosni Mubarak. ¿Não desistam até a implementação de um regime popular baseado na religião¿, declarou, em árabe, durante o sermão semanal das sextas-feiras, dedicado especialmente aos egípcios. ¿O clero deve ter um papel, por exemplo, quando as pessoas saem das mesquitas e gritam slogans que elas devem apoiar. Inshallah (Deus queira, em árabe) que parte do Exército egípcio se una à população¿, disse. ¿O principal inimigo do Exército egípcio é o regime sionista e não a população¿, concluiu, no câmpus da Universidade de Teerã.

Segundo o jornal Tehran Times, Khamenei chamou Mubarak de ¿servo de Israel e dos Estados Unidos¿. ¿Por 30 anos, esse país (Egito) tem estado nas mãos de alguém que não apenas não busca a liberdade, como é o inimigo na busca pela liberdade. Ele não apenas não é antissionista, como é companheiro, colega, confidente e servo dos sionistas¿, comentou o aiatolá, que classificou a revolta no mundo árabe de ¿ecos da voz da nação iraniana¿. ¿Os eventos no norte da África, no Egito e na Tunísia, têm significado especial para nós. É o despertar islâmico, que sempre foi falado durante os tempos da vitória da grande Revolução Islâmica do Irã¿, acrescentou. Khamenei chamou ainda os desdobramentos nos países árabes de ¿um terremoto real¿, capaz de fazer com que os EUA sofram uma ¿derrota permanente¿ no Oriente Médio.

Repulsa A Casa Branca condenou o apelo feito por Khamenei a uma revolução nos mesmos moldes de seu país. Segundo o porta-voz Robert Gibbs, Teerã não tem o direito de fazer tal tipo de comentário, após esmagar sua própria revolta, em 2009. ¿É impressionante que o Irã faça ouvir sua voz, tendo em vista a forma com que agiu quando seu povo tentava exercer os mesmos direitos reivindicados pela população egípcia no Cairo¿, comentou Gibbs, referindo-se aos protestos em massa no Irã após a reeleição, questionada pela oposição, do presidente Mahmud Ahmadinejad. O aiatolá atribuiu o levante político de dois anos atrás a uma influência de ¿elementos estrangeiros¿.

ANÁLISE DA NOTÍCIA A força da realpolitik

Lourenço Flores

Quando o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, se alinhou com os irados manifestantes que transformaram a Praça Tahrir em trincheira para enfrentar a ditadura de 30 anos de Hosni Mubarak e pediu uma transição ¿imediata¿ no tradicional aliado no Oriente Médio, o posicionamento foi saudado como um surpreendente golpe na tradicional realpolitik responsável pelo apoio americano a regimes autoritários pelo mundo. Em nome dos mais variados interesses políticos e econômicos, os EUA não costumam se envergonhar de fechar os olhos para inúmeras violações de direitos humanos e de desrespeito à democracia em países aliados ¿ como o Egito e a Arábia Saudita, por exemplo.

Ontem, jornais americanos revelaram que autoridades do país, a mando de Obama, efetivamente negociam com líderes militares do Egito uma solução que permita uma retirada ¿honrosa¿ e imediata de Mubarak do poder. A proposta em negociação, porém, desautorizaria qualquer ilusão: sim, Mubarak teria que sair, mas o governo de transição sonhado pelos americanos seria liderado pelo hoje vice-presidente, Omar Suleiman. Na prática, pela perspectiva dos egípcios inconformados, isso dificilmente poderia deixar de ser encarado como trocar seis por meia dúzia. Suleiman, que é general, é considerado o principal defensor da tirania de Mubarak ¿ nos últimos 18 anos, foi chefe da famigerada polícia política egípcia.

É evidente que não é difícil entender a dificuldade para Obama ser mais ousado. O presidente norte-americano sabe que, se a revolução egípcia terminar com um governo islâmico radical eleito, ele imediatamente se transformaria em um novo Jimmy Carter ¿ presidente democrata que, em 1979, viu o regime pró-Ocidente no Irã do Xá Rehza Pahlevi ruir e ser substituído pela teocracia liderada pelo aiatolá Khomeini (em consequência, Carter viu voar qualquer chance de ser reeleito e acabou substituído pelo republicano Ronald Reagan).

Pressionado pelas considerações eleitorais e pela comunidade judaica americana ¿ que não pode pensar em ver um outro regime islâmico na região atazanando Israel ¿ e acossado pela onda conservadora que inclinou o país para os republicanos nas eleições de meio de mandato, Obama continua pregando mudanças. Mas nem tanto.